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Conversas de botequim – 20 contos inspirados...

Conversas de botequim – 20 contos inspirados em canções de Noel Rosa

Nascido em 1910 no bairro de Vila Isabel, Rio de Janeiro, Noel de Medeiros Rosa viveu apenas por 26 anos. Esse curto período foi suficiente para que inscrevesse seu nome na história da cultura brasileira, revolucionando a lírica de nossa canção. Em 259 composições, Noel evocou os personagens e o cotidiano da cidade sob um registro originalíssimo. Ao abdicar dos arroubos linguísticos que na época distinguiam a música popular, fez da simplicidade a marca de suas letras.

Oriundo da classe média — estudou no tradicional Colégio São Bento e cursou a faculdade de Medicina —, o compositor desde cedo atendeu ao chamado da boemia. Tinha fascínio pelo universo das esquinas, a conversa de botequim. A vida noturna lhe rendeu grandes amores, parceiros, inspiração. Permitiu, ainda, que estabelecesse um intenso trânsito entre o asfalto e o morro.

Por intermédio do pessoal do samba, Noel rompeu as tradicionais fronteiras do saber letrado. Mergulhou com afinco e paixão na experiência de uma cultura que, embora vigorosa, mantinha-se até então à margem. E a trouxe para sua produção musical. A obra de Noel Rosa se exprime, portanto, como espaço de interseções. De encontros. E é exatamente um encontro que propõe este livro.

Um encontro entre literatura e canção, mas também entre diferentes gerações, trajetórias, vivências. A cada um dos 20 autores aqui reunidos coube a tarefa de selecionar uma música de Noel, composta com ou sem parceiros, e a partir dela criar uma narrativa ficcional. A escolha obedeceu tão somente ao critério afetivo, com total liberdade também quanto às relações a serem estabelecidas pelo texto.

Convidamos escritores de diferentes partes do país, com estilos igualmente distintos. De nomes já consagrados pela crítica a outros que ainda buscam o merecido espaço. A ideia foi apostar na multiplicidade, de modo a possibilitar um diálogo criativo, potente, entre contos e canções. Noel morreu em 1937, vítima de tuberculose. As histórias que se seguem vêm confirmar a atemporalidade da obra que deixou. Um “feitiço decente” que, como diz o verso, tanto nos faz bem. E 80 anos depois continua prendendo a gente.

Boas (re)leituras.

Henrique Rodrigues e Marcelo Moutinho

Apesar do espaço muito bem definido dos bairros da zona norte e dos morros cariocas, as canções de Noel Rosa e de seus parceiros transcendem qualquer recorte aparentemente óbvio. Elas conseguem, a partir de um balcão de bar, uma encruzilhada ou uma rua solitária, falar do mundo inteiro. Suas letras filosofam, fazem rir e chorar, produzem indignação, extrapolam amores conquistados — e, principalmente, perdidos. São personagens extremamente cariocas e, ao mesmo tempo, cosmopolitas. Atravessam avenidas, escandalizam a “moral e os bons costumes”, vivem tanto a superfície das manchetes de jornais quanto a luta popular diária da vida urbana em uma cidade desigual.

É justamente nesse jogo entre tempos e espaços que os 20 contos que fazem parte desta coletânea se instalam. O tempo presente abre janelas do passado para abrigar as histórias feitas a partir das canções do poeta da Vila. Elas transformam temas e vozes de outrora em pontos de partida para as pensarmos na nossa complexa atualidade. No lugar de bondes, serestas, telefones de manivela, programas de rádio e navalhas, podemos ver os corpos sonoros de Noel reencarnados em motoboys, pagodes de mesa, mensagens de celulares, bailes funk e pistolas.

No desafio de traduzir — e expandir — as letras das canções para o texto literário, cada autor consegue imprimir uma perspectiva original, fazendo com que o ouvinte se torne leitor e o leitor se torne ouvinte. É altamente recomendável a leitura de cada uma das histórias com a trilha sonora que as intitula. Não para procurar fidelidades, ao contrário, mas justamente para perceber como os autores souberam dialogar criativamente com palavras que já trazem, na sua origem impecável, narrativas completas. Alguns retiraram seus textos de uma ou duas linhas das letras de Noel. Outros, utilizaram os títulos como motores criativos para ampliar seus sentidos. E há, ainda, os que adentram as letras originais para expandir e esgarçar seus limites quando deslocadas para outros cenários e épocas.

Assim, mulheres originalmente frágeis se tornam fortes, machos que falavam alto afinam vozes, a morte emana nostalgias e histórias de amor são viradas de cabeça para baixo. Ao fim da leitura, fica a sensação de que Noel, se estivesse ainda por aí, assinaria embaixo as linhas que agora o leitor tem nas mãos.

Fred Coelho, professor de Literatura da PUC-Rio

Isto não é um song book. Isto é um book of songs em forma de contos. De um único autor — as músicas, não os contos, escritos e provindos de variadas partes e gerações do país. Ter sambas de Noel Rosa como inspiração (e até mesmo personagem, como um deles tem) é, como o batuque, um privilégio, ainda que ao Rio dos bondes, dos salões de sinuca e dos morros sem tráfico barra-pesada, outro tenha sucedido, com celular, internet, Aids, UPPs, Facebook, Uber, bar com DJ — além de um supermercado onde antes havia aquela fábrica dos três apitos. Num perímetro que vai de Piedade a Copacabana, pequenos dramas e saborosas saias justas típicos de nossa primeira mitologia roseana misturam, com satisfação e harmonia, uma rica fauna de malandros e boêmios, maridos indolentes, desesperadas damas do lar e cabarés, aposentados na pindaíba e mendigos com PhD. Em 20 histórias que enfeitiçam sem farofa. Preso a outros biscates, não pude aceitar o convite de Marcelo Moutinho e Henrique Rodrigues para participar desta roda de bambas. Para minha surpresa e alívio, notei que ninguém afinal pegara o samba que mais me tentava ficcionalizar, Conversa de Botequim. Para que essa obra-prima do coloquialismo e da carioquice não fique de fora desta antologia, cometi, em feitio de microconto, esta paráfrase do Dinossauro de Augusto Monterroso: “Quando o boêmio acordou, o garçom ainda estava lá”.

Sergio Augusto

Livro reúne contos inspirados em canções de Noel Rosa

‘Conversas de botequim’ homenageia compositor morto há exatos 80 anos

LEONARDO LICHOTE

Em 2014, na ocasião do lançamento de “O livro branco”, antologia de contos inspirados em canções dos Beatles, Ruy Castro manifestou sua desaprovação.

—Ele disse que se fossem contos inspirados em Noel Rosa tudo bem, afinal aqui não era Liverpool — conta Henrique Rodrigues, organizador do livro, que recebeu a provocação com bom humor. — Não é que era uma boa ideia?

A alfinetada de Ruy acabou, indiretamente, servindo de inspiração quando Rodrigues pensava com Marcelo Moutinho uma ideia para uma nova antologia de contos — os dois já organizaram separadamente algumas, com temas como as músicas da Legião Urbana, bairros do Rio ou telas de pintores brasileiros. Fãs de Noel Rosa, eles formataram então “Conversas de botequim” (Mórula), que reúne 20 contos inspirados em clássicos (e alguns lados B) do compositor da Vila. O livro — com lançamento marcado para sábado, na Folha Seca, com roda de samba.

Para a tarefa, convocaram escritores de diversos estilos, partes do país e gerações — o mais velho tem 74 anos, a mais nova tem 25. No livro, há contos inéditos de Aldir Blanc (“Feitiço da Vila”), Ivana Arruda Leite (”Boa viagem”), Marcelino Freire (”Gago apaixonado”), Nei Lopes (”Mulato bamba”), Veronica Stigger (”Festa no céu”), Ana Paula Lisboa (”Voltaste”), Flávio Izhaki (”Por causa da hora”), Luisa Geisler (”Dama do cabaré”) e Alexandre Marques Rodrigues (”Com que roupa”), entre outros, além dos prórpios organizadores. O olhar sobre as canções do Noel é tão variado quando a seleção de autores:

— A nossa escolha dos escritores tinha como objetivo essa variações. Temos um conto mais ligado ao contexto histórico da canção (”Mulato bamba”, no qual o próprio Noel é personagem), outros usam aquele arco temático da música dentro de outra história, alguns outros partiram unicamente de um verso… — explica Moutinho. — Noel tinha duas marcas essenciais. A primeira era que ele foi um cara ligado à classe media mas que frequentava a Mangueira, o Salgueiro e outras favelas. Ele fazia essa ponte. E as letras de Noel tiram um pouco o fraque da música brasileira, é muito próxima da linguagem das ruas, retrata modismos, captura aquele momento da urbanização, fala do telefone, do cinema falado, das novas tecnologias.

Muitos contos se afinam a esse desejo de Noel de flagrar o contemporâneo. “Dama do cabaré” narra uma experiência gay num infeninho da Lapa, em alguns momentos usando o formato de diálogo no Whatsapp. “Três apitos”, de Moutinho, tem como personagem principal uma mulher soropositiva que trabalha como caixa no supermercado Extra onde funcionava a fábrica de tecidos da qual Noel fala na canção. “Por causa da hora” é o diálogo de um deputado com o cidadão que sugere um projeto de lei que acabe com o horário de verão — “novidade” com a qual o compositor da Vila fazia graça em 1931. O machismo da letra de “Mulher indigesta” é retorcido na leitura que Henrique Rodrigues propõe — quem acaba levando a tijolada na testa não é a mulher, como na letra original, mas o assediador.

— No livro reunimos escritores que não têm nada de anacrônicos, estão sempre falando de questões do nosso dia a dia — avalia Rodrigues. — Seria difícil eles darem outra roupagem, e sabíamos disso quando os convidamos. Em “Dama do cabaré”, Luisa Geisler escreve: “Parei na pista por uma eternidade longa o suficiente pra jogar Final Fantasy VII do começo ao final”. Essas analogias tecnológicas numa situação dramática é bem da literatura dela.

“Conversas de botequim” acaba tocando no universo da violência doméstica (o belo e contundente “Pra que mentir?”, de Cíntia Moscovich), a morte (“Século do progresso”, de Raphael Vidal, “Quando o samba acabou”, de Fernando Molica, “Com que roupa?”, entre outros), além de temas já citados, como o feminismo, a homossexualidade, as trocas nas redes sociais e o estigma do HIV. Há espaço também o lirismo suburbano de Aldir, que faz uma homenagem ao pai e à Vila Isabel mítica e real em “Feitiço da Vila” — ou a tragicomédia “Tarzan, o filho do alfaiate”, de Sergio Leo. Chamado muitas vezes de cronista por canções como “Conversa de botequim”, Noel tem em sua obra letras que carregam estrutura de (micro)contos de enorme densidade — como “Último desejo”, que Maria Esther Maciel reconta no livro, de outra perspectiva, e “Voltaste”.

O repertório coberto pleo livro foge da obviedade na linha “o melhor de Noel” — algumas canções os organizadores só vieram a conhecer a partir das sugestões do escritores, que tinham total liberdade para escolher sobre qual iriam desenvolver seus contos. Por isso, não é difícil que o leitor se depare com contos sobre canções das quais ele não conhece a letra. Oportunidade de ouvir as músicas — todas acessíveis via busca rápida na internet.

— Os contos têm autonomia estética como peça literária, independem das músicas. Mas a gente espera que os leitores façam o passeio literário e musical, de ler e ouvir as canções juntos.

Moutinho completa:

— Sem a conexão com a música, os contos têm seus sentidos, que se modificam quando você conhece a música e estabelece esse diálogo.

Tem até Pokémon no livro de histórias inspiradas em músicas de Noel Rosa

RODRIGO CASARIN

Um dos maiores músicos da história do país, Noel Rosa foi diretamente responsável pela popularização do samba. Apostando nas trocas culturais entre diferentes camadas da população do Rio de Janeiro do começo do século 20, ccriou canções imortais, como “Fita Amarela” e “Três Apitos”, que se destacam tanto pela melodia quanto pela qualidade d.Fita Amarela” e “Três Apitos”, que se destacam tanto pela melodia quanto pela qualidade das letras. Partiu cedo, há oito décadas, quando tinha apenas 26 anos, mas deixou um impressionante legado. Uma das recentes homenagens que marcam os 80 anos da morte do artista é “Conversas de Botequim” (Mórula Editorial), livro que apresenta 20 contos inspirados por músicas de Noel e assinados por um time de escritores que traz um bom panorama de nossa atual literatura. Os organizadores do volume são os cariocas Henrique Rodrigues, autor de “O Próximo da Fila” (Record) e também responsável por obras semelhantes inspiradas em canções da Legião Urbana e dos Beatles, e Marcelo Moutinho, autor de títulos como “Na Dobra do Dia” (Rocco) e “Ferrugem” (Record).

“Noel revolucionou a lírica da canção brasileira ao abdicar dos arroubos linguísticos que na época distinguiam nossa música popular, apostando  em dicção próxima à da coloquialidade. Para usar uma imagem, diria que ele tirou o fraque e a cartola da nossa letra de música”, diz Moutinho sobre os aspectos que se aproximam da literatura na obra de Noel. O organizador lembra do diálogo de “Conversas de Botequim” e da gagueira presente em “Gago Apaixonado” para falar de como a obra do músico é “original e absolutamente moderna, ecoando as transformações estéticas que aconteciam em outras esferas artísticas, como a da própria literatura. Sem falar na questão temática. Vale lembrar que Noel foi pioneiro ao falar da homossexualidade, no samba ‘Mulato Bamba’, de 1931”.

Na hora de convidar os escritores para participarem da coletânea, Rodrigues e Moutinho prezaram pela diversidade que existe na literatura brasileira contemporânea, reunindo gente de diferentes lugares do país, de diversas gerações e de propostas estéticas distintas. Dessa forma, estão no livro nomes como Ana Paula Lisboa, Veronica Stigger, Cíntia Moscovich, Socorro Acioli, Flávio Izhaki, Sergio Leo, Ivana Arruda Leite, Rafael Gallo, Maria Esther Maciel e Marcelino Freire. Coube a cada um escolher sobre qual música gostaria de criar e o resultado são peças literárias para canções famosas, como “Feitio de Oração” e “Último Desejo”, mas também para músicas nem tão conhecidas assim – “Por Causa da Hora” e “Voltaste”, por exemplo.

Dentre os contos que surpreendem, o que mais chama atenção é o de Luisa Geisler. Baseada na canção “Dama do Cabaré”, a autora criou uma história na qual aparecem referências a aplicativos de celular e games como Final Fantasy e Pokémon Go. “Talvez a maior (e melhor) surpresa foi perceber que os contos não ficaram necessariamente alinhados à época em que as canções foram compostas. Que o diálogo se deu de forma absolutamente livre, muitas vezes com temas contemporâneos, distantes do tempo de Noel. O que talvez só reitere que o homenageado continua sendo um artista moderno 80 anos depois de sua morte”, analisa Moutinho.

Além da relevância artística, o organizador ainda comenta que lembrarmos de Noel Rosa pode ser importante em nosso atual momento por conta de um outro aspecto de sua trajetória. “Um dos traços mais marcantes da vida e e da obra de Noel é a capacidade de trânsito entre espaços geográficos e grupos sociais nem sempre próximos. Oriundo da classe média, ele frequentou o subúrbio e as favelas da cidade. Não com o objetivo de ‘levar cultura’, mas de aprender, de dialogar. Sua arte nasce justamente da interseção entre asfalto e morro, numa relação que nunca foi de solapamento. Pelo contrário: foi de troca. Num momento de tanta cisão política e social, falar da potência dosencontros talvez seja, mais que pertinente, quase revolucionário”. Ou seja, “Conversas de Botequim” reforça o diálogo entre música e literatura, entre o morro e o asfalto, entre as diferentes formas de cultura. O diálogo que tanto anda faltando por aí….

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