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Formas de voltar para casa

Formas de voltar para casa

Inventário dos efeitos da ditadura sobre a infância

À primeira vista, “Formas de voltar para casa” é um inventário íntimo dos efeitos da ditadura sobre a infância. Com a habitual elegância descritiva e uma prosa que dispensa badulaques, Alejandro Zambra ilumina o silêncio da maioria: aqueles que, sob o governo militarizado de Augusto Pinochet, simplesmente tocaram suas vidas, mantendo distância dos acontecimentos políticos.
“Enquanto o país se fazia em pedaços, nós aprendíamos a falar, a andar, a dobrar os guardanapos em forma de barcos, de aviões”, observa o protagonista, ao lembrar dos tempos de menino. “É como se tivéssemos presenciado um crime”.
As reminiscências se revezam, nos quatro capítulos do livro, com o registro de episódios mais recentes: o reencontro, já adulto, com uma antiga paixão platônica; a investida para restaurar o casamento moribundo. Para o personagem, ditadura e a infância são eco de um mesmo ruído. Tudo, passado e presente, parece carregar escombros que não se dissipam.
Mas as sequelas subjetivas da repressão política, embora centrais, definem apenas a camada mais explícita da história. Ao propor duas narrativas – a primeira, sob o viés da “realidade”; a segunda, sob a perspectiva do romance em construção dentro do romance -, Zambra expõe em subtexto a dificuldade de se verter em palavras a memória.
Fatos descritos pelo narrador são posteriormente reelaborados sob a forma de ficção, num jogo de espelhos cujo reflexo nunca é exato. Mesmo eventos prosaicos, como a travessura do protagonista no dia em que fuma escondido ao lado da mãe, podem ganhar novo ângulo. Esse exercício de meta-literatura, a exemplo de “Bonsai” e “A vida privada das árvores”, não se dá de modo gratuito. Está perfeitamente integrado à trama, e lhe traz novas camadas de significado.
Melancólico como os dois romances anteriores, “Formas de voltar para casa” confirma outro traço da obra de Zambra: a perplexidade diante das mudanças que redesenham pessoas e relações, a ponto de não mais as reconhecermos. “Me assombra a facilidade com que esquecemos o que sentíamos, o que queríamos. A rapidez com que assumimos que agora desejamos ou sentimos algo distinto”, resume o protagonista.
Zambra tateia sentidos ao olhar para o Chile de sua infância. Num paralelo com a célebre frase de Borges, há a iminência de uma revelação que não se produz. A busca, porém, persiste. Como diz uma das personagens do livro, “o passado nunca deixa de doer, mas podemos ajudá-lo a encontrar um lugar diferente”.

 
* Resenha publicada no Segundo Caderno (O Globo)


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