O olhar portenho de Roberto Arlt sobre o Rio de Janeiro
Ao ver uma série de fotos do velório de Robert Arlt, Ricardo Piglia detém-se no retrato do caixão pendurado por cabos. O corpo, grande demais para passar pelo corredor, teve que ser retirado pela janela por meio de uma engrenagem de cordas e roldanas. “Aquele caixão suspenso sobre Buenos Aires é boa imagem do lugar de Arlt na literatura argentina”, observa Piglia. “Ele sempre será jovem e sempre estaremos tirando seu cadáver pela janela”.
Arlt morreu em 1942, aos 42 anos. A alegoria, porém, diz menos respeito à juventude eternizada na partida precoce do que à contemporaneidade de seus textos. Escritos que, durante muito tempo, foram massacrados pela crítica.
Filho de migrantes que saíram da Europa para a Argentina, Arlt não teve uma formação clássica como a maioria de seus pares. Foi balconista, mecânico, aprendiz de relojoeiro. O contato com a palavra se deu por intermédio de folhetins, manuais técnicos, romances traduzidos em edições populares. E também da vivência em cortiços, bares e cafés vagabundos, onde se concentravam punguistas e prostitutas.
Esse universo e, por consequência, a linguagem das camadas mais pobres de Buenos Aires aparecerão fortemente em sua obra. Arlt tinha desprezo pelas rodinhas literárias e ofendia o “bom gosto” ao usar termos do “lunfardo”, a gíria da marginalidade. Levar para o papel o idioma falado fora dos gabinetes era quase uma profissão de fé. “Criaremos nossa literatura não conversando continuamente sobre literatura, mas escrevendo em orgulhosa solidão livros que contenham a violência de um ‘cross’ na mandíbula. (…) Os eunucos que bufem”, anotou certa vez.
Nos contos e em romances como “Os sete loucos” e “Os lança-chamas”, o escritor construiu um discurso que mescla referências ao cânone e o léxico nervoso das ruas. Esses traços, da temática ao registro, estão presentes também nas crônicas que assinou entre 1928 e 1942 na seção “Aguafuertes porteñas”, no “El Mundo”. Foi o diretor do jornal, Muzio Sáenz Peña, quem batizou a coluna, inspirando-se na técnica de gravura que se vale da ação corrosiva do aço nítrico sobre placa metálica. A acidez de Arlt estava bem representada.
Nas águas-fortes, ele retratou o cotidiano de Buenos Aires e outras cidades para onde viajou. Uma delas, o Rio de Janeiro. Arlt esteve na então capital da República entre abril e maio de 1930. A temporada rendeu 41 águas-fortes cariocas, agora reunidas em volumes lançados pelas editoras Iluminuras e Rocco.
O livro da Iluminuras traz 73 crônicas portenhas e todos os textos escritos no Rio, além de três produzidos ainda no Uruguai, em que trata dos preparativos da viagem. A tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro mantém o estilo de Arlt, com frases invertidas e repetições, e busca equivalentes para as gírias, aproximando a fala portenha do linguajar paulistano, igualmente tributário da imigração italiana.
A edição da Rocco, com 39 águas-fortes cariocas e outra uruguaia, inclui uma entrevista, além de três crônicas em que o autor reflete sobre o próprio ofício e ironiza relatos de viagem dos compatriotas. Gustavo Pacheco, o tradutor, procura reproduzir a coloquialidade da escritura de Arlt, em alguns casos à custa de sacrificar a fidelidade das palavras ao original.
As águas-fortes cariocas confirmam a fama de arguto observador dos tipos urbanos. A expectativa de Arlt era encontrar o tal lugar “onde tem cada menina que dá calor”. Na mala, avisa, só levaria dois ternos: um “para tratar com pessoas decentes e outro, roto, sujo, o melhor passaporte para poder se introduzir no mundo subterrâneo das cidades que têm bairros exóticos”.
A abordagem do dia a dia no Rio — caminhadas pelo Centro, sessões de ginástica na Associação Cristã de Moços, visitas à redação de “O Jornal”, onde escrevia os textos — privilegia seus afetos. Botecos, pensões e trabalhadores braçais lhe interessavam mais do que os grandes salões ou os círculos intelectuais, como salienta logo ao chegar, na crônica em que comenta reportagem do jornal “A Noite”. A matéria afirmava que Arlt faria uma visita “à pátria do venerado Castro Alves”. “Eu nem sei quem é Castro Alves. Ignoro se merece ser venerado ou não, pois o que conheço dele (não conheço absolutamente nada) não me permite avaliá-lo”, retruca em seu texto.
O tom das primeiras crônicas é de deslumbramento. O Rio lhe parece um “maravilhoso bazar de mil cores”. “Aqui, onde a natureza criou seres voluptuosos, mulheres de olhos que são noites turvas (…), só encontro respeito; um doce e profundo respeito, que faz com que de repente você se detenha e se diga numa conversa consigo mesmo: ‘A vida, assim, é muito linda’”, conta.
Arlt lista marcas que distinguem a cidade — lanterninhas nos cinemas, mulheres que andam sozinhas, o hábito de se tomar em pé o cafezinho —, comparando-as com costumes portenhos. Saúda a postura “honrada e trabalhadora” do povo, destacando o esforço dos negros (não raro com ecos racistas). E abre espaço para arroubos poéticos, como no texto no qual, inebriado pela vista sob a perspectiva do Pão de Açúcar, diz que o Rio foi “fabricado nos vales que as montanhas deixam entre si”.
Aos poucos, porém, o olhar se modifica. A visão idílica vai se esfacelando e o contraste com Buenos Aires acentua-se. “É preciso viajar para perceber certas coisas”, pondera em 27 de abril, quando o processo se inicia. Na crônica, Arlt coteja o comportamento dos operários: “No Rio, o operário não lê, não se instrui, não faz nada para sair de sua condição social paupérrima, na qual a roupa do trabalho é como um uniforme”. Ao contrário de seu país, onde teatro, jornais e romances estariam “formando um povo que faz com que uma pessoa que está longe se sinta orgulhosa de ser argentina”. Dias depois, Arlt defende que o zoológico de Buenos Aires, se comparado ao nosso, seria “Marcel Proust ante o homem primitivo”.
O Rio torna-se então uma cidade sem vida noturna (“O sujeito fica na farra até as dez e quarenta, e às dez e cinquenta chispa para casa”), resignada (“Nossos pedreiros, carpinteiros, portuários têm noções do que é cooperativismo. Aqui isso é desconhecido”) e falsamente cordial (“essa amabilidade brasileira, que ciumentamente oculta as fissuras de sua civilização popular”).
O retorno de Arlt a Buenos Aires acabaria antecipado pela conquista de um prêmio literário. A essa altura, a capital argentina retomara o brilho ante seus olhos. Mais: ganhara nova luz. O Rio, por sua vez, perdera a aura de cartão postal, apagara-se nas frestas da rotina. “Não tem jeito: somos os melhores”, ele escreveu, convicto, antes de embarcar no hidroavião que o levaria embora.
* Resenha publicada no suplemento Prosa (O Globo)
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