Eram 15h39 quando o filete de sol marcou o piso de pedras portuguesas da Cinelândia, como se dividisse a praça em duas partes. O dia, até então, se mantivera nublado. No ponto do VLT, ao sentir a estreita faixa de claridade espetar os olhos, a moça tirou da bolsa os óculos escuros, pôs sobre o nariz. Os demais passageiros, à espera, não notaram o rasgo luminoso no céu cinza.
Num amarelo esmaecido, a linha partia do alto do prédio da Biblioteca Nacional, atravessava a Avenida Rio Branco e se estendia até a calçada do antigo Cinema Pathê. Hoje, uma loja da Igreja Universal.
Junto ao caixa da bomboniére que por tantos anos alimentou as sessões, alguém comprava uma lata de Coca Zero. Torta alemã (fatia) – R$ 11,00, Brigadeiro com coco (fatia) – R$ 11,50, anunciava a placa logo à frente das elegantes prateleiras em vidro e madeira escura, uma réstia do tempo dos filmes no tempo das preces.
Dois homens conversavam no hall da igreja, sem que se pudesse escutá-los. Os acessos à sala principal, escancarados, impeliam a entrar. Convite que o cartaz que toma a parede externa tornava expresso. “Atenção: aqui tem Congresso do Sucesso toda segunda-feira. Para que as portas que estão fechadas sejam abertas”.
Enquanto isso, defronte ao busto de Juscelino Kubitschek, o senhor de terno preto berrava trechos dos Salmos. Não havia ninguém em volta e pouco parecia importar. Bíblia presa à mão direita, ele pregava para os imaginários ouvintes com a certeza entusiasmada do dogma.
“Fala baixo!” Sobressaltado, o mendigo que dormia num banco próximo o repreendeu. No outro banco, poucos metros adiante, uma jovem de vestido xadrez fumava calmamente. O senhor calvo passou por ela, ameaçou se sentar, mas terminou por prosseguir em sua caminhada.
O apito agudo do VLT então soou, pedindo atenção. E outro apito. Um terceiro. Enfim a buzina da moto do agente que escolta o bonde. A buzina insistente.
O menino correu. “Cuidado!” Uma voz feminina, vazando desespero. O menino tropeçou no meio-fio, caiu sobre o canteiro lateral. A dona da voz o ajudou a levantar, recolheu a mochila, o celular. Ele esfregou o cotovelo, limpou o resto de terra que se colara ao braço. Com a mochila novamente às costas, rapidamente ganhou os metros até o café do Odeon.
A mulher se dirigiu ao edifício de janelas em fumê. O McDonald’s, sempre abarrotado. Entrou na fila do sorvete.
No Verdinho, um casal conversava, dois chopes à mesa, os garçons imersos no futebol que a TV transmitia. Foram despertos por um som repentino. Vinha da rua, e reverberava.
A revoada de pombos se deteve em frente ao Pathé. Cabelos grisalhos presos em coque, a senhora retirava milho do saco plástico e lançava ao ar em movimentos sinuosos, quase uma dança. Os grãos se espargiam pela calçada, embrenhavam-se nos sulcos entre as pedras portuguesas. Foi quando percebi que o filete de sol desaparecera.
Baioneta
11 outubro
Gostei da maneira escrita!