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Nota zero para ‘Heróis da liberdade’

Nota zero para ‘Heróis da liberdade’


Lalalalaiá, lalalalaiá. Na melodia que se alonga à primeira e à última sílaba, precedendo a “maravilha de cenário”, a identificação vem de imediato. É Aquarela brasileira, samba-enredo levado à Avenida originalmente em 1964 – e reeditado em 2004 ­– pelo Império Serrano. Talvez a composição mais popular de Silas Oliveira de Assunção.

Nascido nas ruas próximas ao morro da Serrinha, em Madureira, Silas foi o quinto filho do professor e pastor evangélico José Mario de Assumpção. O Oliveira que se notabilizaria no sobrenome veio da mãe, Jordalina. Na terça passada, completaram-se 100 anos desse marco inaugural. Uma biografia cujo capítulo derradeiro, em 1972, tem o impacto de um infarto fulminante.

Muito se pode falar sobre Silas de Oliveira. É fundador do GRES Império Serrano, cidadela da nossa cultura. É autor de alguns dos mais geniais sambas-enredos já compostos, como Os cinco bailes da História do Rio, parceria com Dona Ivone Lara e Bacalhau, e Pernambuco, Leão do Norte. Foi, aliás, responsável pela formatação do gênero.

Nas oportunidades em que se dedicou aos sambas de terreiro, brilhou igualmente. Basta lembramos de Amor aventureiro, concebido na forma de poema lírico. “Não, não deixes que a tentação / E a malícia / Venham seduzir meu coração / Nem arrebatar a minh’ alma / Que aí perdida toda calma / Eu leve com unção / A criatura à perdição”, dizem os versos que se tornariam sucesso na voz de Roberto Ribeiro.

Por 14 carnavais, o Império cantou sambas-enredo de Silas. Mas o episódio que quero contar, nesta semana do centenário, refere-se a apenas um deles: Heróis da liberdade. O meu preferido entre as tantas joias da coroa daquele que, por sua importância capital na gênese da escola, é conhecido como “o Viga-mestre”.

A escola se preparava para o desfile de 1969. Instituindo uma inovação quanto ao sistema de escolha do samba, o presidente Sebastião Molequinho incumbiu a Ala de Compositores de fazer o primeiro corte. Ou seja, uma espécie de triagem, na qual seriam conferidas notas, com a eliminação prévia dos hinos que não tivessem qualidade para ir à final.

“Quando abrimos os envelopes com referência ao Heróis da liberdade, era zero, zero, zero, o próprio Silas! (…) Deu nota um ao samba dele”, relata Molequinho, em depoimento registrado por Marília Barboza e Arthur de Oliveira Filho no livro Silas de Oliveira – Do jongo ao samba-enredo.

Silas ganhara consecutivamente os últimos cinco concursos e os demais compositores não fizeram a menor questão de esconder a antipatia. Carregaram nas notas. Para piorar, Mano Décio da Viola e Manoel Ferreira, que também assinavam o samba, estavam ausentes no dia da avaliação.

Mas o presidente escutara o hino, sabia de sua excepcionalidade. E logo sacou a artimanha. O que fez? Determinou que todas composições inscritas fossem levadas à decisão. Na quadra, não teve para ninguém.

Graças à pronta ação de Molequinho, Heróis da liberdade chegou ao desfile e hoje é cantado nas rodas de samba ao longo do país. Na época, contudo, causou problemas a Silas. O governo militar, no auge da política repressiva, não gostou nem um pouco da ousada crítica à tirania. Como revela a pesquisadora Rachel Valença em Serra, Serrinha, Serrano, Silas e Mano Décio chegaram a ser chamados no Departamento de Ordem Política e Social para prestar esclarecimentos sobre a letra, que evoca a luta dos negros pelo fim da escravatura, os movimentos pela independência do Brasil, a “chama que o ódio não apaga”.

No Dops, instado por um tal general França sobre o “teor subversivo” do samba, ex-soldado Silas de Oliveira responderia: “Eu não tenho culpa de retratar a História. Não fui eu que a escrevi”.

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Trilha-sonora da crônica:

“Heróis da liberdade”, com o coro dos componentes do Império Serrano –https://www.youtube.com/watch?v=DWNqk1IkMD0

“Os cinco bailes da História do Rio”, com Dona Ivone mLara –https://www.youtube.com/watch?v=ZBujBs_lNg8

“Pernambuco, Leão do Norte”, com Roberto Ribeiro – https://www.youtube.com/watch?v=kpKJXH8uJEU

“Amor aventureiro”, com a Velha Guarda do Império Serrano –https://www.youtube.com/watch?v=H3zQbfwkdqE

“Aquarela brasileira”, com Martinho da Vila –https://www.youtube.com/watch?v=KnwxJ06AyX8


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