Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada eram casados e moravam em Aclimação, bairro da região central de São Paulo. Em 1992, resolveram comprar um pequeno colégio que se encontrava em crise financeira. Era o sonho de Aparecida, professora de formação. Aos poucos, a Escola de Educação Infantil Base se reergueu. O número de alunos matriculados saltou, em dois anos, de 17 para 72. O futuro parecia promissor. Até que no dia 26 de março, um sábado, as mães de dois estudantes se encaminharam à delegacia de polícia local, acusando o casal de pedofilia.
As crianças tinham apenas quatro anos. Segundo o relato das mães, os donos da escola promoviam orgias sexuais com os alunos. Após receber a denúncia, o delegado Edélcio Lemos encaminhou os meninos ao Instituto Médico Legal e obteve mandado de busca e apreensão para vistoriar o apartamento do casal. Nada foi encontrado lá. Os exames no IML também não foram conclusivos. Tampouco se apresentou qualquer prova de abuso por parte de Icushiro e Aparecida. Ainda assim, Lemos determinou a prisão da dupla. O caso, a essa altura, já havia chegado à imprensa. Com espalhafato.
O sensacionalismo das reportagens, em TVs e jornais impressos, alimentava a indignação social. “Kombi era motel na escolinha do sexo”, anunciava o extinto jornal Notícias Populares. “Perua escolar carregava crianças para a orgia”, dizia a Folha da Tarde. A Escola Base foi apedrejada. Os donos da instituição faliram, receberam ameaças, viraram párias.
Eram inocentes.
Aparecida morreu em 2007, de câncer. Icushiro não resistiu a um infarto no ano passado. Ganharam indenizações, mas nunca se recuperaram daquele inferno.
Há pouco menos de uma semana, circulou pela internet a notícia do estupro de um homem por 20 outros que com ele dividiam a cela em Taguatinga, cidade satélite de Brasília. Segundo a reportagem, o tal homem, professor de jiu-jitsu, fora preso após a suspeita de ter abusado sexualmente de um bebê de um ano e onze meses — de quem é padrasto. Suspeita, vale reiterar, embora a matéria o taxasse de “tarado” e falasse em “provar do próprio veneno”.
Soube do fato porque meu irmão compartilhou a reportagem no Facebook. O breve tempo que dediquei à leitura foi suficiente para que começassem a pipocar os comentários em defesa do estupro coletivo. “Tá com pena?”, escreveu um. “Bem feito, deviam ter enrabado mais”, completou outro.
O estupro é crime gravíssimo, que ganha contornos ainda mais terríveis no episódio por ter como vítima um bebê. É a miséria humana em todo o seu terror. A punição deve ser rigorosa, na forma da lei, após o acusado ter exercido o direito à defesa e ser provada a efetiva culpa. Antes mesmo de sabermos se é de fato responsável pelo ato de que o acusam, porém, o tribunal de exceção do Facebook já havia decretado a pena do professor de artes marciais. Olho por olho, dente por dente, como na Idade Média. Estamos falados.
Não é preciso ser advogado para compreender que a presunção de inocência, expressa na Constituição, serve justamente para evitar pré-condenações, perpetradas ao sabor dos humores sociais. Pode parecer o contrário, mas o direito à defesa, inclusive daquele que comete o crime mais bárbaro, é salvaguarda para nós mesmos. Ninguém está livre de, em determinada circunstância, se ver acusado de algo que não fez.
O caso da Escola Base chega a empalidecer ante ao que assistimos, hoje, nas redes sociais. Notícias são compartilhadas sem leitura prévia, acusações graves são espalhadas como quem coloca queijo parmesão sobre uma lasanha. O clamor de vingança tem pressa.
Nos linchamentos virtuais, cada vez mais disseminados, cidadãos ponderados tornam-se agressivos, hostis. “Tá com pena?”, “Deviam ter enrabado mais” — as frases ressoam. Entre tantas certezas, a escassez da dúvida e pedras sempre à mão. Como se assumissem outra persona. Ou somos mesmo assim?
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