Sambas morrem


Na terça passada, foram divulgados os sambas que concorrem à honraria de conduzir o desfile do Império Serrano em 2016. O concurso conta com 24 composições e o sistema é simples. A cada semana, há eliminatórias, nas quais alguns sambas se classificam e outros são suprimidos, de acordo com a escolha de um júri previamente formado. Ao menos nas escolas com gestão democrática é assim.

Em 2016, o Império vai homenagear Silas de Oliveira, o maior compositor de sambas-enredo de todos os tempos. Silas é filho da Serrinha, a favela que deu origem à escola. Nascido em 1916, é também fundador da agremiação. O ano que vem marca, portanto, seu centenário.

Para celebrar o autor de clássicos como “Aquarela brasileira”, “Heróis da liberdade” e “Os cinco bailes da História do Rio”, que se foi em 1972, o Império optou por um enredo não propriamente biográfico. Como revela a sinopse, a ideia é que Silas, o preiteado, conte a história da Serrinha e da escola que ajudou a criar.

Entre ano, sai ano, assim que os sambas chegam à internet, escuto cada um deles. No atual concurso, dois me chamaram a atenção. O primeiro, da parceria de Henrique Hoffman, Paulinho Valença, Popeye, Victor Alves, Daniel Teles e Carlitos do Império, pela pegada raçuda que costuma caracterizar as composições dessa turma. Há, entre muitas virtudes, uma belíssima citação a “Aquarela brasileira”, que se encaixa com naturalidade no refrão de fundo. É o lalaiá de ontem que se repete hoje, reprocessado, fazendo a ponte entre dois tempos. A composição, afirmo com quase certeza, estará entre os finalistas.

O outro samba é assinado por Arlindo Cruz, Aluizio Machado, Lucas Donato, Andinho Samara, Zé Glória e Arlindo Netto. No pouco tempo desde que está disponível para audição, suscitou lamentos de decepção e elogios entusiasmados. Faço parte do segundo grupo.

Para começar, é engenhosa a maneira como os autores dão voz a Silas de Oliveira. Ele é quem narra a história, em primeira pessoa. Versos de célebres sambas-enredo de sua lavra se imiscuem na letra com espantosa naturalidade. E a longa extensão alude aos “sambas-lençol” característicos do homenageado, assim chamados por “cobrirem” todo o enredo.

Lembrando a origem rural do Império – Madureira, bairro natal, já foi uma roça –, Silas diz que a Serrinha é, talvez, a mais bela de uma favela, “pois foi assim que meus avós contaram”. A referência à tradição da história oral se amalgama ao senso de pertencimento, em passagem de extrema voltagem poética. Ouro puro.

No refrão de meio, outro achado. Em apenas cinco versos – “O jongo me chamou / Eu louvei Maria / E no toque do tambor tem magia / Veio gente da estiva, da Resistência também / Todo mundo chegou no balanço do trem” –, é desenhada a caminhada histórica do Império Serrano. Do jongo de Tia Maria aos sindicatos da estiva, onde atuaram vários fundadores e dirigentes da escola. Unindo as duas pontas, a linha do trem.

Impossível cravar que o hino de Arlindo e companhia vá ganhar o concurso, embora imagine que chegue à finalíssima. Não se trata de um samba “pra cima” e de refrão “de embalo”, como prega o dogma contemporâneo. É até curioso pensar que, ao menos quanto a samba-enredo, a maior ousadia hoje está em lançar uma composição à antiga.

Ademais, há outros ótimos concorrentes, como a da turma de Hoffman, Valença e parceiros, no páreo. Perder faz parte do jogo. Mas é duro saber que, caso não vençam, os inspirados versos cairão no esquecimento. As exceções são raras e confirmam a regra. Uma delas, decerto a mais famosa, aconteceu no próprio Império, em 1975. Para o desfile sobre a vedete Zaquia Jorge, a escola elegeu o samba de Avarese, dos versos “Baleiro-bala / Grita o menino assim / De Central a Madureira / É pregão até o fim”. Foi um hino derrotado, contudo, que ganhou fama. Refiro-me a “Estrela de Madureira”, de Acyr Pimentel e Cardoso. Gravada por Roberto Ribeiro, a canção estourou em todo o país e continua a integrar o repertório das melhores rodas, embora muita gente ignore que se trate de um samba, originalmente, de enredo.

“Estrela de Madureira” sobreviveu porque Roberto Ribeiro descumpriu a regra não escrita de não gravar sambas-enredos que sucumbiram ao mata-mata da quadra. Outros tantos, em tantas escolas, apagaram-se. Uma biografia de poucos meses, entre a gênese e a recusa do corpo de jurados. Acredito que há um lugar no qual esses sambas são guardados. Um depósito onde versos e melodias que não vingaram enfim se realizam em toda a potência. E que excede a música. Lá está o gol de Pelé, na Copa de 70, após o drible da vaca no uruguaio Mazurkiewicz. O título de Joãozinho Trinta com seus mendigos. A palavra que faltou, o beijo que certo dia hesitamos em dar. É um castelo assombrado pelo quase. Mas feliz.

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Um curto reclame
Acabo de lançar o livro Na dobra do dia(Rocco). É uma seleta das crônicas publicadas aqui, que organizei em dois eixos temáticos. O primeiro, Pequenos amores da armadilha terrestre, reúne os textos mais íntimos, ligados à casa, à infância, à família. Em As ruas pensam, estão as crônicas com o pé na rua, que abordam lugares, comportamentos e personagens da cidade. Será uma alegria para mim reencontrar, nas páginas do livro, o leitor do Vida Breve.


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