Mulato, carioca e torcedor do Madureira – “talvez o único”, provocava o amigo Drummond -, João Ferreira Gomes cumpriu durante quase seis décadas um ritual rígido. A cada manhã, saía de casa rumo à Biblioteca Nacional, onde, debruçado sobre antigos periódicos, buscaria notícias que fizessem por merecer uma segunda chance em suas crônicas. A Jota Efegê interessavam as informações de canto de página, não as manchetes. Com esse lastro aparentemente ordinário, ele resenhou os modos e costumes da cidade onde viveu: o Rio de Janeiro. Que, em amorosa alcunha, chamava de “Sebastianópolis”.
Efegê morreu em 1987, num 25 de maio. Merece ser lembrado. Embora pesquisador rigoroso, nunca se limitou ao papel acomodado do memorialista de gabinete. Aprazia-lhe a alma encantadora das ruas, que começou a conhecer ainda pequeno sob influência da avó, responsável por sua criação. Tia Leandra levou-o aos candomblés da Saúde e da Gamboa, à festa da Penha, aos pequenos ranchos do subúrbio. Quando se tornou jornalista, as andanças pelo Centro, por morros, terreiros, bordéis, gafieiras, teatros e botecos já haviam sido inscritas no rol dos afetos mais particulares.
A força dos textos de Efegê parece nascer justamente dessa articulação entre a investigação teórica e a experiência prática. Garimpadas em velhos jornais, suas prosaicas descobertas radiografam as transformações sofridas pela cidade. Em texto de 1973, veiculado em O Globo, ele nos apresenta o harpista Paschoal, que se exibia na Leiteria Palmira. Mais do que desvelar o inusitado feito de o músico ter ministrado aulas de harpa à Princesa Isabel, Efegê quer comentar é o desaparecimento das “leiterias clássicas” e, por consequência, da “serenidade que reinava em seu ambiente, sem falatório atordoante, sem risadas estridentes”.
São micro abordagens à margem da grande História, nas quais o cronista nos traz personagens singularíssimos. Gente como Altamira Machado, jogador do Bonsucesso e do Botafogo, que mesmo em universo machista como o futebol era conhecido por um nome feminino: Dona Júlia. Ou Carlos Charlot, o vigarista que ganhou dinheiro passando-se por Carlitos nos teatros do Centro.
Essas figuras despontam ao lado de Careca, o folião que, abandonado pela mulher, purgou a mágoa fundando um bloco chamado “Foi ela que me deixou”, e Canarinho, primeiro repórter esportivo a efetivamente se aproximar do campo onde a bola corre. “Vendo de perto o que acontecia, ele dava pelo microfone, rápida e exatamente, a notícia: ‘Não, Ary. Não houve nada! O goleiro está fazendo cinema. Não houve contusão”, descreve Efegê. Ary, no caso, era o Barroso, que tinha duplo ofício: compositor e narrador.
Graças a Efegê, descobrimos que Chico Anísio, na flor de seus 14 anos e muito antes da fama, foi notícia de jornal devido à conquista de um torneio de futebol de botão. Ou que, em 1937, o já célebre Cartola venceu um concurso entre sambistas. “Passada a euforia, ainda com o ruído dos aplausos nos ouvidos, ele se dirigiu à agência de penhores da Caixa Econômica, na Praça da Bandeira, e botou a bonita medalha no ‘prego’”, relata.
No inventário do cronista, o olhar sobre a cidade privilegia duas de suas marcas: o samba e o carnaval. Efegê comenta episódios emblemáticos, como o surgimento do tradicional Cordão da Bola Preta (1918) e a ação do Clube dos Tenentes do Diabo num evento posteriormente questionado por historiadores: em 1864, a entidade teria abdicado de desfilar e canalizado a verba dos carros alegóricos à compra de cartas de alforria de escravos negros. Conta, também, a origem do Rei Momo e sua importação pelo carnaval do Rio, quando, por iniciativa do jornal A Noite, o personagem passou de boneco de papelão a “carne, gordura e alguns ossos”. Primeiro a encarnar o nobre balofo, o cronista de turfe Moraes Cardoso saiu pelas ruas com uma roupa emprestada pela produção da ópera O Rigoleto, em cartaz no Theatro Municipal naquele 1933.
As crônicas de Efegê deixam patente sua decepção com os rumos do carnaval. Ao tratar da chegada do confete “como o chique da festa” carioca, ele lamenta que 70 anos depois “os arremessos que antes se faziam fartos” sejam parcos e caiam sobre os alvejados “como chuvinha miúda”. Com relação às escolas de samba, a crítica é ainda mais dura. Algumas das ponderações parecem ter sido escritas hoje. “Buscando cenógrafos eruditos, coreógrafos cultos, músicos e executantes que leem nas cinco linhas de pauta, [as agremiações] truncam a essência folclórica própria e tornam-se esplendorosos ‘shows’ bem dirigidos”, observa o cronista. O texto é de 1964.
Essa defesa da ‘pureza’ e da fidelidade do samba às suas origens ecoa nos ataques à “jazzficação” da música brasileira e na saudação, em contraponto, àqueles que definia como “sambistas na exatidão do termo”, casos de Donga e Pixinguinha. A saudade evocava um Rio fiel à tradição das pastorinhas e das canções de Natal, que não queria tudo “em linha reta, rápida e decisiva, apontando do presente para o futuro”. Uma cidade que 28 anos após a morte de Efegê continua a servir de tema para os cronistas, como se alimentasse perenemente a certeza: por mais que mude, a “Sebastianópolis” insiste.
***
Coloquei o ponto final nesta crônica sobre Jota Efegê terça passada. Naquela noite, Chico Buarque e a americana Madeleine Peyroux surpreenderam o público do bar Semente, que assistia ao show de Moyseis Marques e acabou brindado com canjas especialíssimas da dupla. Poucas horas antes, Gilson Costa, 12 anos, e Jaime Gold, 57, haviam sido brutalmente assassinados no Morro do Dendê e na Lagoa. O Rio é mesmo uma cidade capaz de, no mesmo dia, ser o seu melhor e o seu pior.
NO COMMENT