Tomada por caixas de papelão, a casa recém-vendida parece uma vaga lembrança de si mesma. Impossível reconhecer as paredes sem os quadros que por tanto tempo estiveram pendurados. Gravuras de Carybé, Volpi, cartazes de cinema. O ventilador de teto e a estante de livros já foram retirados pela equipe da mudança. Na mesa da sala, um repositório de objetos a guardar, os que ficaram por último.
O novo apartamento ainda não constitui uma casa. É apenas promessa feita de madeiras empilhadas e tinta fresca. Ninguém mora lá.
Fernando Pessoa especula, em um de seus poemas, se a alegria revivida ao ouvir uma velha música corresponde de fato ao sentimento experimentado na infância. “Eu era feliz?”, indaga a si mesmo, tomado pela nostalgia. E conclui: “Não sei: / Fui-o outrora agora”. Paradoxo. Se casas são lembranças, talvez igualmente se refaçam, como a felicidade do poeta, na argamassa da ficção.
A minha casa, a alegria de Pessoa, o romance de Jorge Reis-Sá. No atalho da memória, uma coisa só. Falo de Reis-Sá para evocar Manuel Augusto, o protagonista de “Todos os dias”. O livro está sobre a mesa, com os demais objetos sem caixa, à espera. Dentro dele, Justina, António, Fernando e Cidinha – mãe, pai, irmão e a avó de Manuel – descrevem a banalidade do cotidiano doméstico. Os relatos são atravessados pela ausência do parente morto. As reminiscências por vezes colidem, por vezes se tocam.
“A casa que é dos pais inunda-me de passado”, diz Fernando. A mesma casa onde Cidinha fritava sardinhas às quartas-feiras e Justina dava de comer à cadela. Onde se estabelece, também, o confronto central entre os dois irmãos. O pragmático Fernando mendigando a atenção dispensada a Augusto. Este, por outro lado, a brilhar naturalmente com seu carisma.
Uma casa de saudades acionadas por pequenos atos e gestos, como se não fosse sempre assim. E é. No sino da igreja, que se perde em Justina “como um ressoar diário”; na máquina de café, “ligando os barulhos da memória naquele remoer”. À medida que o lugar se esvazia e cada um segue seu rumo – a morte, o casamento -, é preciso povoá-lo de lembranças. “O tempo acaba sempre por rasurar o que sentimos”, eu releio que diz António, enquanto observo a casa, a minha casa. Agora um depósito de cubos marrons, uns sobre os outros.
Para António e Justina, completamente a sós, o vazio é acachapante. Há vazio, também, no emaranhado de caixas. “Nós somos as pessoas que foram conosco”, observa António, como se falasse comigo. Tudo, no livro e aqui fora, se dá em um dia, apenas um dia alargado no espaço da reminiscência. A gata preta, ainda bebê, explorando os cantos da nova moradia, que rapidamente se transforma em passado. A escolha do amarelo de um dos cômodos. A lata de cerveja aberta após os móveis todos terem subido. Catorze andares. O gosto da cerveja gelada ressoando no palato.
“Os mortos só existem enquanto existir quem deles fale”, repete Cidinha, ela própria já falecida, e digo da casa que já não é a casa para que sobreviva além do status da palavra, do artigo que a distingue. Como réquiem. Uma breve ilusão de eternidade no lapso entre o girar dos ponteiros.
NO COMMENT