A edição, da Assirio & Alvim, traz na capa a imagem do mar bravio, com uma grande pedra ao fundo. Data de 2004 e guarda as marcas do tempo, que respingou seu amarelo sobre o cume das páginas. O único livro de poemas de Herberto Helder que tenho em minha biblioteca – e é como se valesse por todos.
Helder morreu dia 23 de março, em Cascais, onde morava. Tinha 84 anos. Já naquela semana quis escrever sobre ele, mas acabei decidindo aguardar um pouco. Como o poeta marcou sua vida pela discrição, talvez faça sentido esperar que as luzes intensas da efeméride da morte esmaeçam, para então acender meu solitário lampião.
Conheci seu trabalho há cerca de uma década, a partir de “Sobre o poema”, texto no qual esbarrei navegando pela internet. “Um poema cresce inseguramente / na confusão da carne / sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto”, dizem os versos. A esplêndida violência, os bagos de uva, as folhas dormindo no silêncio. Tudo isso, escreve Helder, é tomado pelo poema em seu regaço. Uma poesia que nasce das coisas do mundo e as colhe, “contra o tempo”. Que é também corpo vivo.
No prefácio de “Ou o poema contínuo”, o tal livro a que me refiro no primeiro parágrafo, o poeta faz uma espécie de introdução à própria obra. Em versos brancos. “Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta / do gosto, o entusiasmo do mundo”, e a enumeração aproxima o prosaico do sagrado, quebra fronteiras, desestrutura. “Falemos de casas, da morte. Casas são rosas / para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança / nos abandona para sempre”, prossegue ele. A passagem está marcada, à caneta, em meu exemplar.
Penso se livros como esse, poemas como esse, não são como casas para cheirar muito cedo, ou à noite. Quantas foram as vezes em que, sem inspiração para um conto ou uma crônica, ou mesmo para a vida, abri “Ou o poema contínuo” atrás da palavra capaz de acionar a engrenagem da criação. Causar algum movimento, estranheza. Morangos frescos, ainda que por vezes mofem já na boca.
Em belo epitáfio, a conterrânea Alexandra Lucas Coelho conta sobre as horas seguintes à notícia da morte do poeta. Ela caminhava até o Mercado da Ribeira para despachar o lixo. Estava atrasada para um trabalho, o mundo parecia igual, o cotidiano aparentemente impávido, mas enquanto cumpria os passos “algo pousava como um depósito”. “Essa palavra era amor”, conclui.
Herberto sempre estará, igualmente para mim, ligado à palavra amor. Seja pela amorosa casa que me ofereceu tantas vezes em seu livro, seja pela lembrança dos primeiros afetos com Juliana. Faz quase cinco anos. Trocávamos desejos e poemas, ela me enviara versos do Frank O’Hara que falavam sobre a pessoa certa para ficar perto de uma árvore quando o sol baixa, e eu disse do Helder. Ele dizia de mim e eu, dela: “Tu és o nó de sangue que me sufoca. / Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões / da madeira fria”. Dizíamos sem saber também de Lia, que hoje desenha na placenta uma forma de gente.
No ano passado, Herberto lançou novo livro, o último. A edição saiu apenas em Portugal e esgotou em poucos dias; não cheguei a comprá-la. Mas consegui ler parte, ainda que pequena, de suas páginas. Fragmentos. Como aquele em que trata de filhos, palavras, poemas. E da morte que viria colhê-lo. “A morte faz do teu corpo um nó que bruxuleia e se apaga, / e tu olhas entre as coisas pequenas / e para onde olhas é essa parte alumiada toda”. Por um segundo, nada mais.
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