Em romance publicado há 41 anos, Campos de Carvalho narra a história de Hilário, pacato morador do bairro da Gávea. Ao visitar o Museu Histórico e Geográfico, na Filadélfia, ele avista um púcaro búlgaro. O espanto diante do vaso não se dá pelo objeto em si, mas por sua atribuída nacionalidade. Hilário simplesmente não crê que a Bulgária exista. Após retornar ao Brasil, ainda obcecado pela dúvida ontológica, decide então organizar uma expedição à Europa para constatar se de fato há o país, ou não.
“Nos dicionários eles lá estão, um e outro, com os seus verbetes – mas isso é fácil, Deus também lá está; queria é vê-los o autor aqui fora, resplandecentes de luz solar e não de luz elétrica ou gás néon, e sem os canhões de Tio Sam para lhes garantir a pucaricidade ou a bulgaricidade”, observa.
Hilário poderia, nos dias que correm, trazer sua tresloucada caravana para o Rio de Janeiro. Excursionar por bairros que desapareceram, ou estão em vias de, à procura de vestígios. Bairros como Magno, que ficava onde atualmente está a rebatizada estação Mercadão de Madureira, próximo à quadra do Império Serrano.
Magno resistiu, ainda que apenas como nome de estação de trem, até 2013. Ali perto havia também Dona Clara, localidade que morreu após a desativação da estação homônima, em 1937. As duas paragens datam de uma época em que os bairros ainda não eram oficializados pela prefeitura. Foram englobadas pela grande Madureira, assim como ocorre com Turiaçu, onde se destacavam as pedreiras do Morro do Sapê e a fábrica de biscoitos Piraquê. Quando eu era criança e morava nas redondezas, o nome Turiaçu carregava a imagem das linhas de transmissão da Light. Do novo Parque Madureira, é possível vê-las: o emaranhado de torres e fios ligando o presente ao passado, como uma fotografia cujas cores perderam viço.
É tarefa árdua encontrar, hoje, alguém que se diga morador de Turiaçu. Ou do Encantado. Ou de Todos os Santos. Ou de Engenheiro Leal, o pequeno bairro limítrofe entre Madureira, Cascadura e Cavalcante, onde fronteiras se esfarelam. As rotas de ônibus, contudo, insistam em mantê-lo no itinerário. Uma sobrevida.
Já a Aldeia Campista, tão referenciada nos textos de Nelson Rodrigues, sucumbiu. O escritor chegou a morar lá, onde situou livros como “Engraçadinha” e boa parte da série “A vida como ela é”. Na Aldeia Campista, agora anexada a Vila Isabel, localizava-se também a fábrica de tecidos cantada por Noel Rosa em “Três apitos” – hoje, uma filial do supermercado Extra.
Esses bairros se esvaecem espremidos pelo crescimento, e a consequente valorização econômica, das terras vizinhas. Resta-lhes, talvez, o registro dos livros, os verbetes longe da luz solar. Aquilo que vive, vive porque muda, como escreveu Fernando Pessoa. Mas o tempo recolhe tudo em seu regaço.
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