Crepúsculos


Em Cima da Hora, Unidos de Lucas, Unidos do Jacarezinho, Vizinha Faladeira, Tupy de Braz de Pina. Quatro dessas cinco escolas de samba, que fizeram história no carnaval do Rio, hoje purgam a relativa obscuridade dos grupos de acesso, fora da chamada elite dos desfiles. A quinta “enrolou a bandeira”. É assim que se diz, no meio do samba, quando uma agremiação simplesmente para de desfilar.

Meu amigo Janjão acaba de dedicar um livro a elas. A obra é parte de uma série que irá perfilar as escolas de samba cariocas, em projeto semelhante ao que apresentei à editora Senac Rio há alguns anos e não foi para frente. Muito bem vinda a coleção, organizada pelo Aydano André Motta. E ainda mais o livro do Janjão. A bibliografia sobre o assunto, que já não é grande, concentra-se demais sobre as agremiações mais poderosas. O ocaso não costuma mesmo atrair.

O que mais chama a atenção, no livro, são seus personagens, todos eles bem reais. Andressa, Deco, Seu Anatólio. Gente que trabalha dia a dia nessas escolas, alimentando uma paixão que não responde com a vitória.

Quando acabei de ler, lembrei do dia em que conheci Felipinho, hoje parceiro de copo e pelada. Era um sábado e eu havia ido até o Centro. Gosto, nos fins de semana, de almoçar por ali. A multidão de segunda a sexta se evapora, e o coração da cidade se dá a ver em plenitude: sob a luz amena da tarde, concreto e vazio.

Derrotava um filé de picanha com arroz, feijão e batata portuguesa quando fui surpreendido pela aproximação do Felipe, a quem nunca havia visto. Vinha abraçado a um amigo em comum e tinha um copo de cerveja na mão.

– Com licença. Você torce para o América?

A pergunta, logo entendi, era por causa da camisa que eu trajava. Explico: mais cedo, comprara uma camisa do tradicional clube do Andaraí. Um modelo antigo, que remontava à equipe de 1960, campeã da Taça Guanabara daquele ano.

– Não, rapaz. Sou tricolor. Mas acho essa camisa linda, e tenho simpatia pelo América.

A decepção se desenhou no rosto trincado. Trocamos mais uma ou duas frases e ele se foi. Recordo ter comentado com alguém sobre minha surpresa ao encontrar um torcedor americano tão jovem. Mesmo no recente brilhareco do time branco e vermelho no Campeonato Estadual, a grossa maioria da torcida era composta por gente já entrada nos anos. Fui ao jogo e pude notar como a felicidade de ver os americanos de volta ao Maracanã numa final guardava, em paralelo, um encanto triste, o encanto que doura a nostalgia revivida e que, por isso mesmo, não perdura.

João Cabral de Melo Neto – ele também torcedor do América, só que o de Recife – escreveu um poema sobre esse “desábito de vencer” a que me refiro ao falar das escolas ditas pequenas e de um clube que saiu do páreo. Ao falar, sobretudo, daqueles que amam essas escolas e esses clubes, independentemente disso.

O desábito de vencer, diz João Cabral, “não cria o calo da vitória”. “Guarda-a, sem mofo: coisa fresca”. E, sendo assim, rara, preciosa.

Eu, que sou Império Serrano, à espera de uma volta aos melhores dias vez por outra sinto ressoar os versos do poeta. Sem dobrar um milímetro a paixão.

Sei lá, gosto de pensar que as paixões são como um mecanismo inconsciente que encontramos para trapacear a morte. Um jeito nosso, malandro, de iludi-la. Nascemos, nossas escolas e nossos times já estão aí. Confiamos em que, ao morrer, continuarão. O que dá uma impressão alentadora de eternidade, ainda que estejam no claro escuro do crepúsculo. Os crepúsculos também têm lá sua beleza.


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