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Hotel com garagem

Hotel com garagem


Ao meio dia, a Praça Tiradentes é de uma nitidez que chega a espantar. Sem o breu espesso que a cobre durante a madrugada, sou capaz de distinguir seus contornos mais recônditos, as grades, a aspereza, as sujeiras. Uma clareza opressiva.
A praça parece ter ficado maior depois que as grades foram retiradas. Em frente à Avenida Passos, à espera do sinal vermelho, olho as construções ao redor. Pessoas correm, ligeiras, perseguindo as horas perdidas. Meu destino é a Saara, onde os apetrechos exigidos por uma festa à fantasia aguardam deitados em bancas ou pendurados nos cabides empoeirados das velhas lojas, entre esfihas e barraquinhas de sorvete.
O sinal demora a abrir e o trânsito está quase parado. Nos corredores entre ônibus e carros, fileiras de homens deslizam como uma imensa centopéia. O painel anuncia uma peça qualquer no João Caetano, a preços populares. Faz calor e penso em comprar um ingresso. Desisto logo. Então confiro novamente o sinal: o tempo parece estancado no verde. É quando noto a moça.
Debruçada sob o parapeito da janela de um edifício na esquina da praça com a Avenida Passos, ela apoia o cotovelo sobre o outro braço e contempla o movimento da rua, como uma boneca namoradeira. Não parece triste, apenas distante – enfronhada nos próprios pensamentos. Talvez lamente uma noite ruim, talvez pense nas contas que não fecham, talvez faça planos para as horas que hão de vir. Elas sempre vêm.
Deslocando o olhar, percorro a parede do prédio, andar por andar, até encontrar a portaria. No letreiro, uma pintura já esmaecida informa: ‘Motel’.
Lembro que, quando pequeno, meus pais costumavam dizer que motel era um hotel com garagem embaixo. Durante algum tempo acreditei nisso, e a recordação arranca do meu rosto um sorriso nostálgico. Meus olhos, assim como os da moça, por um segundo fitam a praça sem enxergá-la.
Mas o foco logo volta ao edifício. A fachada que confessa seu cansaço nos espaços vazados dos rebocos. As feias janelas de alumínio, quase todas fechadas, guardando as promessas da madrugada, quando enfim se abrirão. A entrada do corredor principal. O cartaz pedindo vinte reais pelo período: seis horas, almoço incluído. Por fim a moça, que permanece no vão do terceiro andar, estátua viva, quase parte da construção.
Nos quartos trancados, imagino eu, homens fazem sexo com mulheres, homens com homens, mulheres com mulheres, vários jogos, montagens, formações, gostos, desejos: no 201, o rapaz com a amante mais velha; no 304, o senhor casado que alugou um garoto; no 407, o clássico chefe-secretária; no 409, o casal de estudantes com pouca grana aproveita a promoção (e a refeição) da tarde.
Todos multiplicados nos espelhos da parede e do teto em pernas, braços, mãos, pés, dedos que se entrelaçam, se esfregam, se agridem, se apertam, preenchendo os próprios vazios com carne, fluidos e transpiração, à espera de um gozo incerto, mas obsessivamente buscado.
(Nas TVs de catorze polegadas que enfeitam os aposentos, o gozo é garantido).
O sinal provavelmente já se fechou, abriu, tornou a se fechar, e percebo que a moça se foi. Deixou seu lugar já quase cativo na janela, seja porque combinara de encontrar alguém ou porque queria ir para casa, precisava comprar carne e leite, ou simplesmente dormir.
Na ausência dela, o vão na imensidão azul de concreto é apenas uma moldura. Não vai demorar até que a faxineira entre no quarto, varra o chão, troque os lençóis, borrifando um spray de cheiro bom no ar. Depois sairá e fechará a porta, a caminho de outro cômodo.
Retomo o trajeto rumo à Saara e, ao cruzar a Avenida Passos, volto ainda uma vez o olhar. Avisto ao longe a janela do terceiro andar, já cerrada. No escuro, o quarto desocupado decerto espera outra moça. Sem amor, sem tesão, sem suor, sem ninguém. Somente a acachapante solidão dos lençóis brancos, limpíssimos, sobre a cama.


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