Madureira parou naquela Quarta-Feira de Cinzas, quando uma multidão foi às ruas comemorar o título do Império Serrano ao som de “Bum Bum Paticumbum”. Corria então o ano de 1982, e eu era apenas um garoto que, começando a tatear as coisas da vida, me deslumbrava com as pessoas em festa, debruçado na varanda do sobrado da família.
Não poderia imaginar que a alegria do campeonato não se repetiria. Mais: que o samba composto por Aloísio Machado e pelo saudoso Beto Sem Braço anunciaria, de forma profética, o futuro do próprio Império. Prestes a completar 60 anos, a agremiação hoje parece relegada a segundo plano ante a espetacularização que rege as Superescolas de Samba S.A.
Sem patronos, o Império patenteou desde o berço sua principal marca: a democracia. A escola surgiu da revolta de integrantes da antiga Prazer da Serrinha frente à imposição de um samba ao escolhido pela maioria. Comandado por Sebastião de Oliveira, o Molequinho, o grupo se amotinou e decidiu fundar uma agremiação diferente, na qual não haveria ordens verticais sem debate. Essa aparente utopia ganhou corpo na casa de Dona Eulália, onde foram escolhidos o nome e as cores que pintariam o estandarte. O líder Molequinho queria tingir o Império de ouro e azul, mas, derrotado na votação que consagrou o verde-e-branco, acatou o resultado. Naquele 23 de março de 1947, a vocação libertária se confirmava.
A estréia da nova escola sinalizaria o início de uma trajetória vitoriosa. Já no ano seguinte, o Império faturou o título, o que se repetiu sucessivamente até 1951. Em seis décadas, foram nove conquistas e 10 vice-campeonatos, jóias reluzentes de uma caminhada repleta de desfiles memoráveis que, se muitas vezes não receberam o reconhecimento dos jurados, sempre tiveram a acolhida popular.
Foi o caso da homenagem a Betinho, em 1996, quando a Serrinha passou pela Sapucaí aos prantos. A falta de dinheiro se evidenciava na dimensão dos carros alegóricos e na pobreza das fantasias — e, no entanto, o Império desfilou com vigor e coragem. A beleza, ali, brotava da valentia. Não à toa: de certo modo, assim como o Betinho, éramos almas intensas num corpo frágil — e conscientes disso.
Algo semelhante aconteceu em 2004, quando a escola levantou a Avenida como há tempos não se via ao reviver “Aquarela Brasileira”. A reverência a Silas de Oliveira, compositor que, ao lado de Mano Décio da Viola, formatou o samba-enredo nos moldes clássicos, remetia ao carnaval de outrora: a essência do desfile fora o prazer de brincar, não a riqueza.
Silas, aliás, é responsável por dois outros hinos que figuram entre os mais geniais já escritos: “Heróis da Liberdade” e “Os Cinco Bailes da História do Rio”. E não foi só nisso que o Império inovou. O primeiro destaque, a comissão de frente, os pratos, o reco-reco e o agogô chegaram à Avenida através da Serrinha.
Claro que essa bonita história — contada graças aos sonhos de tantos, mas também ao trabalho admirável de Rachel Valença — tem seus momentos tristes. O maior deles quando a escola resolveu, em seu Jubileu de Ouro, vender-se por 30 dinheiros e cantar a vida de Beto Carrero. Pagou o preço do rebaixamento. São, porém, notas de rodapé que não chegam a tirar o foco da luz que guia o Império: a tradição.
E é justamente pela fidelidade à tradição que a Serrinha se distingue. Muitos defendem que a agremiação se adapte, enverede pelo espetaculoso, já que hoje uma alegoria modesta conta ainda menos do que um samba ruim, numa inversão perversa. Não! Se, com as atuais regras, a escola está fora do jogo, pior para o jogo. Nada contra organização, capricho e requinte. Mas o Império Serrano tem que continuar a ser o “Menino de 47”, de Campolino e Molequinho, a escola da “Serra dos Sonhos Dourados”, o reduto do jongo, a casa de Roberto Ribeiro, Dona Ivone Lara, Mestre Fuleiro e Wilson das Neves.
Imperiano de fé não cansa, não.
* Artigo publicado no jornal O Globo
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