Certa vez perguntei ao Chiquinho Genu por que enfim todo domingo, esteja triste ou alegre, disposto ou desanimado, ele pega seu violão e ruma para o Bip Bip. Espécie de líder informal da roda de samba que acontece semanalmente, com a mesma voz rascante que enverniza as canções de Nelson Cavaquinho e Chico Buarque, Genu me respondeu: “Precisamos mostrar para os mais jovens o que é o Bip, porque caberá a eles levar adiante”.
Comovente em sua simplicidade, a explicação dá conta do significado maior que alimenta não só a roda do Bip, mas tantas outras que se espalham pelo Rio, alheias a modismos eventuais. Evidentemente, o minúsculo bar da Avenida Almirante Gonçalves tem lá suas peculiaridades, a começar pelo dono. Alfredo Jacinto Mello, o Alfredinho, é a personificação do poema de Maiakovski: “todo coração”. Apaixonado pelo Botafogo e pela Mangueira, socialista e cristão daqueles que vão mesmo à missa, é o elemento aglutinador daquela pequena multidão que se reúne no crepúsculo do fim de semana em Copacabana.
Mas para além de qualquer singularidade – e cada espaço decerto tem as suas -, há nesses redutos aquelas relações íntimas de pertencimento que meu saudoso professor e amigo Roberto M. Moura apontou no livro No princípio, era a roda – Um estudo sobre samba, partido-alto e outros pagodes. Laços de amizade e sangue são construídos, dores individuais são maceradas em ritmo e álcool, diluídas no canto forte e sinuoso que, num feliz paradoxo, embala o lamento característico de boa parte das letras de samba. “É como se o tempo tivesse parado e o mundo ficasse lá fora”, observou Moura.
E a dor que se canta não é só aquela mais comum e profunda: a dos amores que se foram e não se sabe se voltarão. Canta-se também a dor coletiva – no caso específico dos cariocas, a dor das flechas que, como alertaram Aldir Blanc, Moacyr Luz e Paulo César Pinheiro em Saudades da Guanabara, foram fincadas sobre o corpo frágil do padroeiro São Sebastião. Canta-se a nostalgia de uma cidade que, ainda imune a Cesares e Garotinhos, era mais Cabral pai e menos Cabral Filho. E onde, para nos mantermos no boteco de Aldir/Moacyr, as nossas histórias pessoais escorrem, queiramos ou não.
Essa cidade ainda é possível porque sua alma, embora machucada, viceja em cantos como os que foram citados na matéria ao lado, pequenos recintos nos quais as ondas do momento, sempre passageiras, não imperam. Microcosmos onde a herança é motivo permanente de tributo, sem que isso signifique colocar vendas sobre aquilo que é novo – e, bem processado, encaminha-se para virar memória também. Porque sempre haverá dor, e amores, e histórias escorrendo pelas esquinas. Sempre haverá, enfim, samba. E, se Deus quiser, haverá Bip Bip também – para que a gente possa no domingo ter a fina alegria de atravessar o bar, espremendo-se entre os músicos e os outros freqüentadores, e pedir: “Anota mais uma cerveja, Alfredinho!”
* Crônica publicada no Jornal do Brasil
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