Carnaval from Broadway, bicho!

Peço licença para devagar, devagarinho, destoar do coro dos contentes. Não vou entrar em matéria de mérito – até porque faz muito tempo não existe relação direta entre merecimento e resultado quando se trata de julgamento de carnaval. Quero apenas levantar a questão: o que havia, no desfile vitorioso em 2010, da tradicional escola de samba surgida em 1931 no Morro do Borel? Pouco, quase nada. Havia, sim, teatro. Pirotecnia. Efeitos especiais. Sub-Broadway.
Nada contra a Unidos da Tijuca, digna de todo o respeito, pela trajetória e pela representatividade no carnaval do Rio de Janeiro. Mas quando cada componente – de carro e de chão – passa a ter uma “função” rigorosa dentro do desfile, deixa de ser folião. E então nos distanciamos do conceito de escola de samba historicamente construído, que dá lugar a um “espetáculo” no qual, assim como numa ópera, ou numa peça, os atores desempenham papel rígido. Pode ser genial, mas está longe de caracterizar a essência da festa de Momo.
O uso de teatralização no desfile, que não repudio em si, é expediente utilizado pelas escolas há muitas décadas. Mas os excessos trazidos pelo modelo Paulo Barros transformam em central o que era – e deveria continuar sendo – periférico. E levam ao paroxismo um caminho que infelizmente parece inevitável: a mudança no eixo medular dos grêmios recreativos.
Sim, porque, na concepção consagrada pela História, as escolas de samba trabalhavam durante todo o ano para mostrar, na Avenida, um pouco do saber nascido e cultivado entre os seus. Para reafirmar, no desfile, as suas singularidades – ainda que se apropriando de influências externas, e sintetizando-as. Esse diálogo entre os núcleos das agremiações e a cultura “de fora” se revelou extremamente rico até que as escolas começassem progressivamente a cair de joelhos diante do poder do carnavalesco. A se tornar reféns de um olhar de fora, em geral acadêmico, sempre dominante. Em resumo, o vínculo se desequilibrou.
Como a Unidos da Tijuca deixou patente, uma escola comandada por Paulo Barros mostra a arte de Paulo Barros. Hoje a Tijuca, amanhã uma outra, sempre a arte de Paulo Barros. Os gritos da torcida durante a apuração foram emblemáticos: aludiam ao carnavalesco, não à escola campeã. Não lhe nego talento, a imensa criatividade. Mas seu modelo simboliza com limpidez a perigosa prevalência do teatral sobre o momesco, do visual sobre os demais quesitos. Não à-toa, os últimos sambas-enredo que efetivamente colaram na memória popular datam do início dos anos 1990.
Na verdade, a desproporcionalidade de critérios entre as notas dos itens, digamos, “sambísticos” (bateria, samba-enredo, harmonia, evolução) e as dos quesitos plásticos, como fantasia e alegorias, vem suscitando uma mudança na forma de se olhar o desfile. Como observou o jornalista Sidney Rezende, “o carnaval virou uma pasta geral e não uma festa de detalhes. Quem está na arquibancada valoriza o carro alegórico, as musas e o casal de mestre-sala e porta-bandeira, pois são as poucas possibilidades para o olhar mais distante. Fisicamente dizendo. O resto é plano geral”.
Esse processo se agrava com a débil transmissão pela TV, que repisa o favorecimento ao visual, privilegia as celebridades em detrimento das personagens das próprias escolas e é incapaz de contextualizar o desfile na perspectiva da ‘biografia’ de cada agremiação. Grandes referências, como Vilma, da Portela, ou Seu Molequinho, do Império Serrano, e mesmo talentos mais recentes, como Mestre Marcone, da Imperatriz Leopoldinense, se vêem diluídos num mar de gente, do qual as câmeras pescam apenas as modelos que vestem a camisa da escola uma vez ao ano e falam de sua “emoção”, as rainhas de bateria que compram seus postos, ou os carros alegóricos, cada vez maiores.
Um dos motes dos defensores do novo modelo é a crítica a uma suposta repetição. Talvez por isso o aparecimento de personagens como Batman, Homem-Aranha, Michael Jackson – embora a rigor às vezes nem aludam ao enredo – tenha tanto apelo. Aliás, a roupagem pop de Paulo Barros é puro bálsamo para os pós-modernos sempre ávidos pelo novo, e o novo, e o novo.
Essa ânsia reiterada exulta o descompasso no “mais do mesmo” que os desfiles teriam se tornado, como se fosse necessário apagar todas as marcas de origem que as diferentes escolas consolidaram. No entanto, ao negar a ponte com a tradição, rompe com o que há de mais belo e genuíno no carnaval. A emoção de ouvir o surdo sem resposta da Mangueira ou a cadência da bateria da Beija-Flor, de ver a coroa do Império, a águia da Portela, o vermelho e branco do Salgueiro, de reencontrar o colorido da União da Ilha.
Na década de 70, Candeia já alertava para o fenômeno da descaracterização das escolas de samba. Quando li pela primeira vez suas teses, julguei-as demasiadamente radicais, apocalípticas até. Hoje, percebo que o baluarte portelense foi profético. Ao abrir mão da personalidade que as distingue em prol da onda do momento, ao transformar o componente em mero repetidor de passos ensaiados, ao ceder à ditadura estética, as escolas perigam virar entidades ocas, exuberância sem conteúdo. E a natureza ensina: árvore que não rega as raízes acaba morrendo.

 
* Artigo publicado na seção Logo, do jornal O Globo


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