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Entre dores e delícias, a literatura dos tempos de...

Entre dores e delícias, a literatura dos tempos de hoje

No polêmico O cânone ocidental – Os livros e a escola do tempo, Harold Bloom faz o elogio da tradição em contrapartida ao questionável relativismo pregado pelas cátedras dos chamados “estudos culturais”. Logo na primeira frase do prefácio, contudo, o professor da Universidade de Yale admite que, ao eleger e estudar 26 dos mais respeitados autores da literatura mundial, deixou-se “necessariamente” levar por “certa nostalgia”. Felizmente, a “nostalgia” de Bloom, como a leitura atenta do livro comprova, refere-se à natural influência dos antigos sobre os novos escritores, num processo que envolve transmissão e também desvios, conflito entre gênios passados e aspirações presentes. “Poemas, contos, romances e peças nascem como uma resposta a poemas, contos, romances e peças anteriores, e essa resposta depende de atos de leitura e interpretação pelos escritores posteriores”, anota ele.
Sob esse aspecto, o raciocínio revela-se bem azeitado. O problema é que, pelo menos no caso brasileiro, tanto a Academia, quanto boa parte da crítica apegam-se a outro tipo de “nostalgia”. Como que usando antolhos às avessas, simplesmente parecem ignorar aqueles que surgem como potenciais novos atores da cena literária. Recordo-me que, há cerca de três anos, conversava com um professor sobre a possibilidade de cursar o mestrado em Letras, tendo como foco de estudos os textos veiculados nos blogs, então em pleno processo de disseminação. “A maioria da banca nem saberá do que se trata”, foi o comentário dele a respeito da proposta. Esse “saudosismo” que engessa setores da crítica e da universidade não se deve apenas à (desejada) ânsia pelo “rigor”; comporta também o receio do equívoco ao ratificar “talentos” ainda não legitimados.
Só para nos mantermos na seara da prosa, abundam em universidades e livrarias teses e monografias sobre Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Clarice Lispector e tantos outros que ajudaram a construir a “tradição” brasileira. Também merecem a deferência de pesquisadores e editoras nomes mais contemporâneos, como Sérgio Sant’anna, Rubem Fonseca, Caio Fernando Abreu… Todos eles, sem dúvida, mui dignos da atenção dispensada. Mas a quem o bastão será entregue?
Caso os próprios autores que tentam romper esse círculo vicioso não começassem a forçar passagem, provavelmente tal bastão não sairia do lugar. E o rompimento vem se dando a partir de várias frentes. De edições independentes, que lutam bravamente contra as imensas dificuldades de distribuição e penetração na mídia especializada; dos blogs, que – vale lembrar – constituem um meio, e não um fim, e facilitam a “publicação” dos textos e o contato inicial com um público-leitor; de oficinas e saraus que se multiplicam espontaneamente; e de iniciativas como a revista Paralelos, com seu fundamental trabalho de mapeamento em nível nacional.
O lançamento da coletânea Prosas cariocas – Uma nova cartografia do Rio e o conseqüentes debate A nova prosa carioca, promovido pelo Espaço Sesc, vêm somar-se a esse grande movimento cuja meta primeira é a visibilidade – não sob a perspectiva espúria do ingresso no mundo cor-de-rosa das “celebrities”, mas sob a premissa de que escritores escrevem para serem lidos. O livro Prosas cariocas, organizado por mim em parceria com o jornalista e escritor Flávio Izhaki, reúne alguns desses novos escribas, cuja produção não pode continuar a ser ignorada a priori. O conjunto de 17 contos expõe uma visão sobre o panorama literário da cidade, e os 17 escritores esperam que possíveis avaliações tenham como base dados concretos – ou seja, a leitura de seus textos -, e não abstrações que preguiçosamente estão sempre à mão, sobretudo daqueles que, “nostálgicos”, não se dispõem a procurar.
Estão aí, atrás de publicação individual, Ana Beatriz Guerra, Antonia Pellegrino, Augusto Sales, Cecilia Giannetti, o já citado Flávio, Henrique Rodrigues, Marcelo Alves, Mariel Reis, Miguel Conde, Sidney Silveira e Vinicius Martinelli Jatobá. Estão aí, dando seguimento à trajetória já iniciada, Bianca Ramoneda, João Paulo Cuenca, Juva Batella e Mara Coradello. Está aí Adriana Lisboa, chegando ao quarto livro. E estão aí também autores como Tatiana Salem Levy, Pedro Sussekind, Simone Campos e Rosana Caiado, que não entraram no Prosas cariocas, mas têm ajudado a oxigenar nossa literatura ao dar efetividade prática ao mister a que se propuseram – escrever –, sem chororô e com entusiasmo. Apesar de o artigo ter como objeto autores-revelação no âmbito do Rio de Janeiro, não falamos de um “fenômeno” carioca. O espectro é mais amplo, como o demonstram Santiago Nazarian, Índigo, Joca Reiners Terron, entre tantos ao redor do país. E nem mesmo restringe-se às Letras, já que em outras áreas – o teatro, as artes plásticas, o cinema, para ficarmos só com três exemplos – ocorrem movimentações semelhantes.
Em meio a esse crescente grupo de escritores, cada um com seu estilo (alguns ainda em processo de afirmação), cada um com suas influências (alguns ainda demasiadamente presos a elas), entre textos mais afeitos às escolas clássicas e narrativas mais experimentais, há decerto flutuações de qualidade. Talvez haja também o deslumbre marcadamente pós-moderno (e bastante compreensível) em torno da “originalidade”; a impressão de se ser “Adão de manhã cedo”, para recorrer novamente a Bloom. Independentemente disso – e então me incluo taxativamente -, somos a dor e a delícia dos tempos de hoje, da literatura que se faz nos tempos de hoje, ou “as flores do mal e do bem do florilégio de uma época”, como bem frisou Nelson de Oliveira ao apresentar, há dez anos, outra seleta de quase-calouros.
Nesse recorte subjetivo, cuja construção se segue com empreitadas coletivas e individuais, novos nomes com certeza entrarão. Outros, desaparecerão antes mesmo de constituir uma “obra”. Importa é que uma geração inteira de escritores começa a pleitear um minuto da atenção, um minuto de leitura e uma postura menos passiva das editoras, em geral tão conservadoras na hora de arriscar. E arriscar, como observou o sagaz Flávio Izhaki, “não significa transformar blogs muito visitados em papel couché”, mas filtrar o que há de precioso e ainda inédito, ou ainda garimpar promissoras pedras brutas – e burilá-las.

 

* Artigo publicado no site Portal Literal


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