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O cinema e a invenção da vida moderna

O cinema e a invenção da vida moderna

As lentes cinematográficas da modernidade

Em “Vida, o filme”, publicado há pouco mais de dois anos, o historiador Neal Gabler provocou polêmica ao descrever, valendo-se de casos como a morte da princesa Diana, a progressiva transformação do cotidiano em espetáculo. Gabler analisa os mecanismos que teriam nos transformado em híbridos protagonistas/espectadores de um show que nunca sai do ar. Este que o autor identificou como “paradigma da atualidade” constitui o mais recente capítulo das grandes mudanças ocorridas no interstício dos séculos XIX e XX, quando, junto aos passos primevos da chamada modernidade, surgia o cinema.
O abrupto desenvolvimento tecnológico e o crescimento das cidades ajudariam a formar uma nova subjetividade e a sedimentar a sociedade de consumo. Teóricos como Georg Simmel e Walter Benjamim dedicaram boa parte de seus estudos ao fenômeno — e as referências ao trabalho de ambos resplandecem nos 13 ensaios que compõem “O cinema e a invenção da vida moderna” (Cosac & Naify), coletânea organizada por Leo Charney e Vanessa R. Schwartz.
Ao abordar temas aparentemente díspares como um quadro de Manet, os cartazes publicitários ou a afluência aos museus de cera e ao necrotério de Paris, os artigos produzidos por acadêmicos americanos têm como elo a premissa de que a cultura moderna foi cinematográfica antes mesmo da popularização do cinema. Em meio à turbulência do tráfego, ao barulho, às vitrines, aos anúncios, gerava-se uma nova intensidade de estímulos. O observador clássico dava lugar ao “sujeito atento instável”, competente tanto para se apresentar como consumidor quanto como agente na síntese diversificada de “efeitos de realidade”.
No afã de satisfazer essa nova subjetividade, as formas de lazer começaram a se direcionar para a representação de instantes isolados das distrações e do efêmero. O cineasta Jean Epstein, citado no livro, utiliza o termo “fotogenia” para designar o prazer indescritível que tomava o espectador e significaria, assim como a cor para a pintura e o volume para a escultura, o elemento específico do cinema. O filme resultaria da colagem de uma cadeia de momentos capaz de recriar o movimento, somente possível de se conceber sob a ótica de quem assiste.
Mas o cinema figura como apenas uma da série de invenções que incorporaram os elementos-chave do olhar moderno. Os ensaios contemplam outras características que se insinuavam: o reconhecimento da vida diária como objeto válido para a investigação, a captura das descontinuidades da percepção pelos sentidos, os tais “choques” da vida moderna apontados por Benjamim, que levavam os indivíduos a fundir necessidade material com satisfação psíquica do desejo. Esse fascínio pelo cotidiano, já observável na literatura, no jornalismo e na fotografia, fazia-se presente também nos curta-metragens do chamado “cinema de atrações”.
O sucesso das primeiras projeções, que sucederam experiências como a do kinetoscópio de Édison, serve como ponte para outro tópico dissecado no livro: o comércio. Além de um estudo sobre o embate das empresas americanas contra o poderio da francesa Pathé na distribuição de filmes, há um interessante exame da disseminação dos catálogos de venda por correspondência, demonstrando como tais publicações estimularam uma espécie de “flânerie rural”. A representação dos produtos oferecidos por redes como a Sears e a Roebuck chegava aos lares de indivíduos isolados das metrópoles, atrelando-os à nova sociedade e estimulando o olhar além da própria comunidade.
Ainda no campo dos negócios, são analisadas as mudanças efetivadas no West End londrino a partir dos esforços de empresários no sentido de transformar o consumo em prazer legítimo e convocar as mulheres a ingressar no ambiente das lojas de departamentos. Erika Rappaport ressalta a veiculação pela mídia de colunas sobre moda cujo cunho era eminentemente comercial, vinculando-as à tentativa de apagar a distinção entre publicidade e informação.
Na investigação dos fios discursivos situados na contramão das loas à modernidade, o foco preciso de Marcus Verhagen centra-se sobre os cartazes de Julés Chéret, que anunciavam os “music-halls” da Paris do final do século. Admiradas pelo público, as peças tornaram-se alvo de críticas nostálgicas. Em revista da época, o escritor Maurice Talmeyr classificava-as como “única arte dessa era de agitação e riso, violência, decadência, eletricidade e esquecimento”, formulando, como antítese, um elogio às construções em pedra do passado.
Críticas como a do escritor francês mostravam sua face principalmente através da imprensa. Ao esquadrinhar os cartuns publicados nos jornais, Ben Singer revela as constantes investidas dos desenhistas contra o “caos do trânsito”, em contrapartida à tranqüilidade dos tempos idos. Essa abordagem, contudo, expressava-se ao mesmo tempo como reflexo e sintoma: da pena dos críticos sobressaía um tom sensacionalista que acabava afinal por sublinhar o traço moderno por excelência. O fato se repete no exemplo dos museus do folclore, cuja topografia é analisada por Mark Sandberg. A despeito de tentar “preservar” a experiência cultural original perdida, apostava-se em uma estética de exibição antenada com o espetáculo moderno. Paradoxos expostos pelos artigos do livro e que hoje, no quadro exposto por Gabler sob a égide do tão desgastado termo “pós-modernidade”, talvez perdurem.

 
* Resenha publicada no suplemento Prosa & Verso • O Globo


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