READING

Uma carta para 2065

Uma carta para 2065


Querida Lia,

No dia em que escrevo esta carta, 31 de agosto de 2015, os jornais trazem a notícia de que um grupo de jovens, todos negros e pobres, foram revistados quando se dirigiam de ônibus rumo à praia de Copacabana. É inverno, eu sei. Mas o Rio de Janeiro tem a vocação do sol, costuma desorientar as estações. Talvez ainda seja assim agora, no momento em que você enfim lê as palavras escritas e guardadas por cinquenta anos, e no qual a cidade completa seu quinto centenário. Essa cidade “bonitinha e má”, como bem qualificou, em um samba, o compositor Nei Lopes.

Os meninos vestiam calções do tipo surfista, camisa e chinelos. Nada diferente do traje costumeiro para se ir à praia num dia ensolarado no ano de 2015. A polícia suspeitou deles, pediu documentos, apalpou seus corpos em busca de alguma arma. A alegação era de que se tratava de uma ação preventiva.

Enquanto eu lia a matéria do jornal, sentado à mesa da sala, você dormia em seu carrinho. Quarenta dias após nascer, ainda sentia a troca da placenta pelo ar. A respiração arranhando, o nariz a estudar, num batuque assaz desconjuntado, o ritmo do mundo: inspiração, expiração, inspiração, expiração. Ciclo-contínuo.

Hoje você tem cinquenta anos e eu muito possivelmente já cantei para subir, como dizem os do candomblé. Não posso imaginar que notícias trazem os jornais desse novo tempo. Desconfio, aliás, que os jornais já não existem e os fatos da vida, velozes como os supersônicos de minha época, são reportados em telas finíssimas e curvilíneas. Muito práticas, cabem dentro do bolso.

Quando eu ia à praia, ainda jovem como aqueles garotos da blitz, costumava pegar a linha 701 em Madureira e atravessar os bairros, a caminho da Barra, lendo o jornal. Sonhava um amanhã no qual ajudaria a preencher aquelas páginas que invariavelmente sujavam a mão de quem as manuseava. Elas desenhavam, no decalque mal feito, as linhas do futuro.

Mas os jornais só farão falta aos que, como seu pai, acostumaram-se com eles. As gerações pouco antes da sua, e isso eu pude testemunhar, já se viravam bem com a leitura das notícias via internet. No fundo, o suporte não importa tanto se o que está dentro presta.

Escrevo tudo isso porque essa cidade onde você vive hoje é filha da cidade onde vivi, assim como você é minha filha. A conexão, embora por vezes silenciosa, insinua-se nos vincos do rosto, nas dobras do pescoço, no modo como ajeita os braços antes de dormir. Na tez da pele, no contorno da paisagem, no emaranhado de construções, na topografia.

Em 2015, a casa onde um dia moramos – eu, seu avô, sua avó, suas tias – é uma clínica médica. Não tenho ideia do que haverá ali, naquele ponto específico da Rua Carvalho de Souza, em 2065. Mas gostaria que você soubesse que, numa fenda qualquer do terreno, está você, em potência. O tempo deles, o meu tempo, o seu tempo. Que, somados, são de alguma forma um só.

Quando eu morava lá, queria que existisse uma livraria no bairro. Mas livrarias eram lojas restritas ao Centro da cidade, ou à Zona Sul. Penso que, assim como os jornais, tampouco há livrarias nos 500 anos do Rio. Em área alguma. E aí lhe digo: é pena. Livrarias não são apenas lugares onde se compram livros. São pontos de interseção. Onde falamos sobre livros, claro. Mas igualmente sobre a rodada do futebol, os versos incríveis de uma nova, ou velha, canção. Palavrões, bobagens. E dos amores que se vão e se vem, como naquele exercício da bebê aprendendo a arrancar oxigênio da atmosfera. Às vezes dói, mas é preciso.

Taí: as livrarias estão entre as coisas que eu adoraria que existissem quando você abrir esta carta.

Que as rodas de samba permaneçam ajudando na purgação das agruras, alegrias, frustrações da gente; que as pipas continuem a cruzar o céu do subúrbio, desenhando linhas coloridas; que o Império Serrano faça bonito no carnaval. E você saiba, como escreveu certo dia um poeta chamado Vicente Huidobro, que em todos os caminhos há estrelas que se perdem, mas caminhos devem ser abertos, sempre.

Não peço tanto mais. Se no Rio de Janeiro, em 2065, jovens negros e pobres puderem ir à praia num dia de sol sem que pese sobre suas costas a sombra da desconfiança, essa já será uma cidade melhor.

Com amor,

Seu pai


O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *