Quem circula pelo Rio de Janeiro, sobretudo pelo Centro, certamente já esbarrou com o caricaturista Cássio Loredano. Cássio é o típico andarilho – ou flâneur, se quisermos nos valer de um termo mais frufru. Alérgico a automóveis, que qualifica como “células cancerígenas no organismo urbano”, chega a atravessar bairros inteiros no esquema pé ante pé, o olhar revezando-se entre os sulcos das calçadas, a passagem dos carros e as pessoas que seguem, com ou sem pressa, a caminho de algum lugar.
Penso em Loredano e lembro de Augusto, o personagem de Rubem Fonseca. Protagonista do conto “A arte de andar pelas ruas do Rio de Janeiro”, ele se torna andarilho após ganhar na loteria, o que lhe garante proventos suficientes para que deixe o emprego na Companhia de Águas e Esgotos. Passa a escrever a cidade, tentando decifrar suas mensagens secretas.
“Andar pelas ruas de uma cidade é uma arte”, observa a certa altura da história. Pois Loredano tira do livro e traz para a vida a frase de Augusto. É o que pratica no dia a dia, ainda que não tenha acertado na loteca e o sustento ainda dependa de seus desenhos. Cruzar a cidade no ritmo delicado do passo, sentir sob a sola dos sapatos – indefectíveis tênis All Star – a vibração silenciosa do chão que amalgama o pó do asfalto ao barro da existência, tornando tudo uma coisa só.
A cartografia íntima de Loredano engloba Laranjeiras, Botafogo, Flamengo, Glória, Centro, e inclui paradas estratégicas. Para a compra de um novo dicionário na Livraria Folha Seca. A conversa fiada com os amigos. Uma cerveja. Tudo a seu tempo.
Ele vê o que os outros quase não podem entrever, como anotou João do Rio ao descrever o movimento da flânerie. “As observações foram guardadas na placa sensível do cérebro; as frases, os ditos, as cenas vibram-lhe no cortical”. A aparente futilidade das ruas torna-se, então, poesia.
No recém-lançado livro “Rio, papel e lápis”, o caricaturista redesenha a paisagem construída da cidade com essa tinta de tons tão sutis. A pequenina e secular igreja que se esconde ao fundo da Rua Faro, a estação ferroviária de Marechal Hermes, o Theatro Municipal. Símbolos evidentes e recônditos esconderijos se sucedem num roteiro que começa na Zona Sul, passa pelo subúrbio e vai terminar em Santa Cruz, no limite da geografia carioca.
As ruas de Loredano, assim como os curtos textos que acompanham as imagens, congregam passado e presente. Ele lamenta que a bela sede do Fluminense, na Rua Pinheiro Machado, tenha sido escondida por “paredões residenciais”. Chama de “bizarríssimo” o Castelinho do Flamengo e abre mão do eufemismo para classificar a Avenida Presidente Vargas: “uma boçalidade”.
Os traços evocam a memória, dele e da cidade, para apostar na utopia da permanência. Na faísca de eternidade que por vezes se desprende do que é, em essência, efêmero. Seja a fachada de uma antiga casa na Rua Haddock Lobo, sejam as moças que caminham ao cair da tarde pela Praça XV, diante das quais, arrebatado, o caricaturista não hesita em exclamar: “Como passa mulher bonita neste lugar, meu Deus”.
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