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Fragmentos de um espelho partido

Fragmentos de um espelho partido


Os óculos de metal fosco e aros finos repousavam sobre a mesa como a mais festejada certeza repousa sobre dúvidas. Olhei para eles assim que entrei na sala, antes de investigar as paredes, mexer nas roupas, abrir os armários, revirar as gavetas. Em suma: penetrar sem maiores licenças na intimidade de quem já não podia me negar nada. Foi uma espécie de levante a imagem dos óculos em meio a tantos objetos. A tarefa desde o começo me parecera péssima: encontrar uma vela que ela manifestara certo dia querer ter junto a si quando morresse.

Ela morreu, mesmo. E lá fui eu, encarregado pelos demais de executar o trabalho, me deparar com a arrumação de seu apartamento, a derradeira arrumação. A primeira visão logo ao entrar foram aqueles óculos, deixados sobre a mesinha preta da sala, abertos, sem proteção, como quem sabe da volta. Descansavam ali na expectativa de se sentir úteis, oferecer uma certa nitidez das coisas.

Olhei para a mesinha e de repente me peguei apalpando os meus óculos. Senti-os na ponta dos dedos, talvez na busca de uma prova material da existência, da minha existência.

A utilidade daqueles óculos esquecidos na sala, ávidos por sua função, por sua dona e todos os pertences dela, era como se desaparecesse. Como se eles morressem e estivessem, a exemplo do corpo dela, à espera de um enterro, de um ritual para o fim. A partir de agora, só serviriam como referência tímida à pessoa, mais ou menos como fotografias, ou situações marejadas pelo tempo e pela memória subjetiva dos outros.

Se durante aquela desagradável visita em busca da vela eles não estivessem espalhados pela casa, eu nada diria, provavelmente nem o notasse. Sim, os óculos se materializariam, vez por outra, mas apenas na imaginação, funcionando como amparo às saudades dormidas, ou mera partícula, quase imperceptível, da lembrança do seu rosto. Assim como tudo o mais, fragmentos de olhares passados, irremediavelmente alienados à nossas mudanças.

Ou fragmentos de espelhos, pois da mesma maneira que o morto levou junto a ele a sua verdade singular sobre as coisas – enterradas consigo -, as nossas verdades quando pairam pela imaginação também já não são as mesmas.

Falar sobre as diversas mortes, os espelhos que se quebram, os olhares que se dissimulam sob lentes recém-compradas, mesmo este falar certamente se dá por meio dos óculos que me permitem, neste momento, digitar as letras no teclado do computador. Objetos saem e entram em nossas listas de prioridade, descem às raias do inútil, num revezamento múltiplo em que não há espaço para todos. Há lugar, é verdade, para as lembranças, mas estas não se definem na forma das coisas em si, mas na forma que a elas destinamos na fertilidade da memória, na ficção da história recontada. Nossas mortes enterram e elegem, e a dor da perda é por vezes grande, por outras nenhuma, porém sempre suportável. Caso contrário seria preciso matar-se por completo e deixar aos demais o jugo sobre tudo o que é nosso. As linhas que escrevo, elas mesmas quebram espelhos, me desmontam, me assassinam como se a própria literatura fosse para seus operadores um suicídio constante e inevitável.

Por isso, aqueles óculos sobre a mesa, que num primeiro momento me arrebataram como a inutilidade da certeza da volta, o clichê do desespero da finitude, ou mesmo o último fotograma bem centrado e significativo de uma vida trágica, transformaram-se na imagem possível de um sentido. Não sei onde eles foram parar. Talvez no lixo que consome as coisas efêmeras, talvez na gaveta nostálgica de algum parente, reunindo resquícios de uma vida partida. Eles continuam esperando. Não tem como saber da morte, exceto com a sua própria morte; não puderam ser avisados de que os olhos a quem serviam já não veem. E mesmo aqueles olhos que, também apoiados em óculos e à procura de uma vela nunca encontrada, miraram-nos numa manhã arredia, com expressão de susto e desânimo, de temor e reverência, não lhes dispensam tanta atenção, porque estes, hoje, também já morreram.


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