Receita de miojo


Quatro parágrafos, sendo um de apresentação do tema, dois de desenvolvimento e um de conclusão. Eis a premissa de boa redação que vigorava na época em que fiz vestibular e que persiste no Exame Nacional do Ensino Médio, mais conhecido pela sigla Enem. O concurso foi destaque esta semana nos principais jornais, quase sempre em tom de histeria, devido à prova de um aluno que resolveu desafinar o coro e incluir, no meio de seu texto, uma prosaica receita de miojo. Pois também vou desafinar: achei ótimo.

O estudante alcançou 560 dos mil pontos possíveis, suscitando uma verdadeira caça às bruxas com relação a quem corrigiu a redação. O garoto é bobo, inconsequente, imaturo, um retrato da juventude descompromissada (ah, os velhos tempos…). Já os corretores querem apenas ganhar um dinheiro fácil sem muito trabalho. Julgamentos apressados de quem adora acusar a impressa de julgar apressadamente.

Não importou aos críticos que a correção tenha sido feita de acordo com as regras do Enem – se urge mudá-las, a história é outra. Tampouco que em 20, das 24 linhas do texto, o estudante aborde o assunto proposto sem grandes equívocos de ortografia, gramática ou argumento. Pau neles.

Nessa ânsia moralizante, que se espalhou por seções de cartas e redes sociais, perdemos a possibilidade de observar o episódio com menos estridência – e mais humor.

O que vi na polêmica redação foi um interessante exercício de nonsense. Quando muda de assunto de forma abrupta, cortando o raciocínio sobre a imigração no Brasil para relatar o preparo de um “belo miojo”, o aluno zomba é das regras rígidas da redação. Mostra a nós todos – e pouco importa se foi ou não intencional – que ambos, o miojo e a redação, têm uma “receita”.

“Ferva trezentos ml’s de água em uma panela, quando estiver fervendo, coloque o miojo, espere cozinhar por três minutos, retire o miojo do fogão, misture bem e sirva”, escreve ele.

Lembro que, no terceiro ano do então segundo grau, um colega de turma compôs uma redação brilhante e recebeu nota mínima de um constrangido professor porque o texto não obedecia às exigências do vestibular. O modelo era (e continua) engessado. Tolhe a criatividade em nome de um padrão mediano.

Quarta passada, num chope pós-debate literário, o escritor Ronaldo Bressane me explicou o significado de “coxinha” para os paulistanos – a gíria não é usada no Rio. Para tal, retrocedeu até o tempo do Império. Bressane contou que o filho da Princesa Isabel com o Conde D’Eu adorava coxas e não aceitava comer nenhuma outra parte do frango. Certo dia, por não haver galinhas em número suficiente, a empregada desfiou a carne e modelou com massa, de modo a que imitasse uma coxa. Como não só o menino, mas a família inteira gostou do resultado, o quitute acabou entrando no cardápio da Corte.

“Então, a gente chama de coxinha o sujeito ‘empanado’, ‘arrumadinho’”, disse o Bressane. Aquele que nunca sai do script, acrescentaria eu.

E por que falar disso no meio de uma crônica sobre redações?

Antes que dêem nota zero ao cronista, esclareço: porque, pegando emprestada a expressão, também existem redações-coxinha. E é bom que de vez em quando apareça um miojo para variar. Ainda que sem manteiga e grana padano.


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