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Livros e metamorfoses

Livros e metamorfoses


No dia 23 de agosto de 1939, uma semana antes de a Segunda Guerra Mundial eclodir, o romancista Elias Canetti se deparou com o escrito de um autor anônimo, que dizia: “Tudo, porém, já passou. Fosse eu realmente um poeta, teria necessariamente podido impedir a guerra”.

Seu primeiro sentimento, revelou Canetti em discurso feito em Munique muitos anos depois, foi de pura irritação. “Irritação crescente”, fez questão de salientar, criticando a jactância, a pretensão e o “rosário de objetivos magnânimos” que teriam desgastado a palavra “poeta”.

Passados alguns dias desde que viu a frase, no entanto, o entendimento mudaria, como ele conta no mesmo discurso de Munique. Canetti começa a perceber que, pelo contrário, o escrito era expressão de uma derrota completa e desesperadora. Talvez mais que isso: inevitável. E então passa a fazer a defesa do poeta, de sua faculdade de promover metamorfoses, da insistência em sacudir o domínio crescente da morte em tantas pessoas, ainda que essa façanha às vezes lhe pareça inútil.

A reflexão de Canetti ecoava na mente enquanto eu cruzava as estradas do Paraná, o verde musgo das araucárias contrastando o verde claro da mata rasteira, a caminho dos debates organizados pelo Sesc nas cidades de União da Vitória, Ponta Grossa e Paranaguá. A ementa da mesa em que tomaria parte, ao lado da Luciana Hidalgo, tratava justamente da possibilidade (ou não) de a literatura fomentar a transformação social.

Nos três encontros, Luciana expôs com brilhantismo como Lima Barreto — autor no qual é especialista — valeu-se da própria obra para denunciar o racismo, as desigualdades e o deslumbramento colonizado do Rio do começo do século passado. Por meio da literatura, Lima expôs um certo estado das coisas, apontando a necessidade de mudanças. É inegável. Mas me pergunto, sem nenhum ranço de crítica: seus livros foram capazes de modificar a sociedade? A sociedade, falando de forma global?

Não creio. Sou fã da obra de Lima Barreto e de muitos outros autores que ergueram, com seus textos, trincheiras ficcionais na tentativa de tornar o mundo melhor, mais justo. Penso, porém, que a fagulha realmente transformadora, a potência maior de um livro, ocorre sempre em âmbito individual. Em cada leitor, e não no todo. É no átomo do corpo social que a literatura consegue detonar uma revolução.

Quando eu era criança, minha irmã Sandra me apresentou a história de “Flicts” e tive a sensação de que era aquela cor sem lugar no universo. Mais tarde, eu seria o homem doente de “Notas do subsolo”, um repugnante inseto, a menina para quem soaria sempre clandestina a felicidade.

Esses livros, se não puderam modificar a sociedade em sentido amplo, me mostraram que eu não estava sozinho. Que havia mais pessoas tateando sentidos, perplexas com o abismo que a vida encerra, dia após dia. E também que é possível sobrevoar esse abismo, observá-lo, descrevê-lo, até mesmo tocá-lo, sem despencar nele.


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