Quando era pequeno, minha irmã mais velha fez uma entrevista comigo. Mary gravou nossa conversa numa fita cassete, que volta e meia colocava no som do seu carro. “Que bicho você queria ter?”, “O que você quer ser quando crescer?”, “De que cor você gosta mais?”. Eram perguntas desse tipo, não me lembro exatamente quais. E a fita, pelo que sei, se perdeu nas gavetas do tempo. Hoje só me recordo de uma das questões. “Qual seu instrumento musical predileto?”.
“Vitrola”, eu falei.
Era possível ouvir, na gravação, as gargalhadas largas da Mary diante de minha resposta. Quando pequeno, a frase me dava certa vergonha. Depois, já adolescente, passei a pensar que talvez eu tivesse, isso sim, afeição por todos os instrumentos. Uma justificativa possível para a ignorância de menino. Vai ver eu queria era ser maestro, ora bolas. Resolvido o trauma, sempre que colocávamos a fita para rodar, ríamos bastante, agora eu e Mary.
Nessa época, e já corriam os anos 1980, o médico e escritor Pedro Bloch tinha uma coluna na revista Pais e Filhos. Ele contava pequenos casos envolvendo crianças, como o da minha entrevista — que não, não foi publicada lá. Os textos tratavam da inquieta curiosidade dos pequenos. Eu os adorava. Eram formados, basicamente, por uma coleta de frases hilárias e perguntas desconcertantes, ao menos para o rígido mundo dos adultos. Acabaram virando livro, que, claro, eu comprei.
Mas perdi. E esqueci dele. Ao menos até a semana passada, quando me deparei com um trabalho do colombiano Javier Naranjo. Professor de um colégio na cidade de Antioquia, em seu país, ele propôs um jogo de palavras a seus alunos, com idade entre seis e doze anos. Pediu que cada um definisse o que, no seu entender, seria uma criança.
“Uma criança é um amigo, que tem o cabelo curtinho, joga bola, pode brincar e ir ao circo”, respondeu Luís Gabriel, do alto de seus sete anos. Outros conceitos vieram, estimulando Naranjo a continuar com a brincadeira, que foi transformada em pesquisa e estendida a colégios de outras localidades colombianas. Por fim, deu origem ao livro “Casa das estrelas” — nome que um dos garotos, Carlos, deu ao universo.
“Adulto é uma pessoa que em toda coisa que fala, vem primeiro ela”, definiu Andrés, de oito anos. “Assassinato é tirar o melhor de uma pessoa”, explicou Juan, de nove. Para Natalia, Igreja é onde as pessoas vão perdoar Deus.
É assim, deslocando ideias fixas até o limite da metafísica, que as crianças refazem significados. Tatiana distingue a água como “transparência que se pode tomar”. A colega Viviana diz que o “amor é quando batem em você e dói muito”. “Céu é de onde sai o dia”, exprime Duván. Sob a perspectiva de quem começa a tatear o universo, os alunos podem ser divertidos (“Chuva é Deus fazendo xixi”), transcendentais (“Deus é nossa alma, como se fosse um vento”), amorosos (“Mãe é a pele da gente”).
O clichê da pureza infantil se dobra ao espanto diante da vida, que inevitavelmente todos perdermos, ou perderemos, em algum grau. Para Leidy, a luz “é algo inventado pelo homem para não se ver na escuridão”. Glória enxerga a eternidade como “um poço que não tem fundo”. E o tempo, sublinha Roger, “é algo que corre na gente”. Em verdade, mal começou a correr nesses meninos, embora eles por ora possivelmente ignorem.
Talvez por isso a liberdade de escrever os próprios dicionários de coisas do mundo, assim como fiz, ainda engatinhando na fala, com minha vitrola. De moldar com barro quase intocado os sentidos de cada palavra (esse lugar onde “as pombas de escondem”, segundo León) até que explodam em construções tão comoventes. E poéticas. Não fosse a poesia, como diz Mateo a seus dez anos, “algo ridículo”.
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