Quando se menciona hoje o nome de Francisco de Paula Brito, cujo bicentenário será comemorado no próximo dia 2, a frase quase sempre comporta uma alusão a Machado de Assis. Essa recorrência, que parece natural pelo fato de Paula Brito ter sido o primeiro editor a publicar um texto de Machado, na verdade acaba por tornar periférico um personagem que teve papel central no universo da cultura brasileira do Século XIX.
Foi no jornal A Marmota que, em 1855, Paula Brito veiculou o poema “Ela”, escrito por aquele que viria a se consagrar como o Bruxo do Cosme Velho. Machado tinha, então, pouco mais de 15 anos de idade e já frequentava a loja que o editor mantinha na antiga Praça da Constituição (hoje Praça Tiradentes).
O estabelecimento chamava-se Empresa Tipográfica Dois de Dezembro – alusão aos aniversários de Paula Brito e do imperador D. Pedro II – e era um misto de papelaria, livraria, editora e tipografia. Além disso, funcionava como ponto de encontro de artistas, políticos e intelectuais da época. Gente como o próprio Machado, Manuel de Araújo Porto-Alegre, Joaquim Manuel de Macedo e o Visconde de Rio Branco, que formavam a Sociedade Petalógica.
Reunindo-se aos sábados, a confraria era um núcleo de debates sobre os assuntos mais variados, da plástica do verso à pirueta da dançarina da moda. O tom bem-humorado se sugeria já no título da irmandade, derivado da palavra “peta” (“mentira”).
“Queríeis saber do último acontecimento parlamentar? Era ir à Petalógica. Do nôvo livro publicado? (…) Da última peça de Macedo ou Alencar? Do estado da praça? Dos boatos de qualquer espécie? Não se precisava ir mais longe, era ir à Petalógica”, como comentou Machado, em texto de 1865. Neste sentido, a loja foi pioneira, abrindo caminho para outras livrarias que futuramente se transformaram em território de discussão e mediação cultural, como a José Olympio.
Em sua firma, Paula Brito publicou livros, jornais, revistas, opúsculos, peças de teatro, teses e estampas.
– Foi o primeiro grande editor do Brasil, responsável inclusive pela primeira revista cultural de importância por aqui, a Guanabara – conta o escritor e historiador da arte Rafael Cardoso, que dedica um dos capítulos do recém-lançado Impresso no Brasil – 1808/1930 (Verso Brasil) ao trabalho do tipógrafo.
Entre os livros editados por Paula Brito, estão o primeiro romance brasileiro – O filho do pescador, de Teixeira e Souza, uma de nossas peças inaugurais (Antonio José, ou o poeta e a Inquisição, de Gonçalves de Magalhães), obras de Martins Pena, Casimiro de Abreu, Machado e de vários membros da Petalógica.
– Quase tudo que se entende por Romantismo, nos estudos literários brasileiros, passou pro seus prelos – frisa Rafael.
Muitos desses autores costumavam colaborar também com A marmota, que promoveu inovações na imprensa do período. Menos sisudo do que os demais periódicos, o jornal de Paula Brito trazia em suas páginas anedotas, máximas, charadas e enigmas, além dos textos ficcionais.
Paula Brito foi, também, poeta, contista, dramaturgo, tradutor e letrista. Com Francisco Manuel da Silva, autor do Hino Nacional Brasileiro, compôs o Lundu da Marrequinha, bastante tocado em seu tempo. E, honrando a fama de bom anfitrião, promoveu eventos que reuniam músicos e escritores, estimulando parcerias em modinhas e lundus.
Outro aspecto relevante de sua trajetória foi o engajamento na luta abolicionista. Paula Brito já militava contra a escravidão e a favor da igualdade racial antes mesmo de expoentes da causa, como José do Patrocínio e Joaquim Nabuco, terem nascido. Como ressalta o escritor Nei Lopes, o jornal O homem de cor, editado a partir de 1833 por Paula Brito, marca o início de uma imprensa voltada para a defesa dos interesses da população negra no Brasil. “Segundo Roger Bastide, entre outros méritos, esse tipo de jornal permitiu aos escritores de cor, que dificilmente podiam participar de periódicos, a publicação de seus versos e contos, revelando novos valores literários”, observa Nei.
Doutora em História Social e pesquisadora do Iphan, Renata Santos destaca que Paula Britto fez tudo isso “sem obter uma educação formal e ocupando um lugar à margem da elegante Rua do Ouvidor”.
– Ele consolidou seu negócio como uma referência na cidade. Apesar de ter se esforçado para incorporar a cultura letrada, não abriu mão de afirmar a sua condição de tipógrafo, construindo uma trajetória que desconsiderou os limites entre o erudito e o popular – diz ela.
Renata salienta a colaboração do tipógrafo e editor à construção de uma identidade relacionada ao mundo do trabalho. “Sujar as mãos era coisa de escravo e Paula Brito foi ousado e corajoso o suficiente para contestar isso com inteligência. Naquela época – e, de certa forma, até hoje -, o trabalho intelectual se sobrepõe ao trabalho manual. Imagino o quanto não foi difícil não abdicar de sua identidade de origem e, ao mesmo tempo, projetar-se em um ambiente avesso a esse valor”, afirma a pesquisadora.
Em texto veiculado na Marmota em 1855, e reproduzido por Eunice Ribeiro Gondim na biografia Vida e obra de Paula Brito, o próprio tipógrafo reiterava esse orgulho: “Amamos tanto a tipografia, somos tão entusiastas dela, que por mais elevada que fosse a nossa posição, por maiores que fossem os nossos haveres, dir-nos-íamos sempre tipógrafo, porque se o ser artista, simplesmente, não é uma honra, o ter habilitações para o ser (…) é uma glória que, se nem todos a tem, todos deveriam caprichar em tê-la”.
No entanto, se esse mulato de origem humilde conseguiu conquistar lugar num meio tão hostil aos de sua linhagem, seus feitos são atualmente pouquíssimo reconhecidos. Lamentando a relativa desimportância a ele dispensada, Renata lembra por oposição o caso de Machado, também pobre e de ascendência negra, que conseguiu se inserir na esfera intelectual e cuja herança é festejada.
– Por que o legado social de Paula Brito não é mais que suficiente para lhe atribuir mérito? – questiona a pesquisadora, arriscando uma explicação. – Talvez porque ele se constituiu como uma espécie de ‘operário das letras’, não se encaixando na figura do intelectual padrão, o que dificulta a tarefa de classificá-lo. Como explicar um mulato que, sem dinheiro, sem nunca ter frequentado a escola, abre espaço para si em plena sociedade escravista do Século XIX, levando ao limite as possibilidades do seu ofício?
De todo modo, a memória de Paula Brito está sendo evocada ao menos pelas livrarias do Centro. Desde o começo do ano, o dono da Folha Seca, Rodrigo Ferrari, mantém em sua loja um banner em tributo ao tipógrafo, desenhado pelo caricaturista Cássio Loredano. Abraçando a iniciativa de Ferrari, a Leonardo da Vinci e a Travessa vão expor o painel no mês de dezembro. Paula Brito será também o homenageado na próxima edição do Mapa das Livrarias do Centro. Nada mais adequado para quem sempre viveu cercado de ideias – e livros.
Box: ‘Imagem alterada para reforçar o mito de herói’
O episódio em torno do retrato do marinheiro Simão, publicado em 1853 na Marmota Fluminense e depois distribuído por Paula Brito sob a forma de estampa, é um exemplo da militância abolicionista do tipógrafo. No livro A arte brasileira em 25 quadros (Record), Rafael Cardoso mostra como Paula Brito utilizou a pintura de José Correia Lima para reiterar o mito de herói que recaía sobre o marinheiro negro, responsável pelo salvamento de 13 pessoas no naufrágio do vapor Pernambucana.
Simão, que na pintura aparecia em roupas simples, surge na estampa de Paula Britto vestido de casaca e gravata, com uma cabeleira alta e bem penteada. “Na passagem para a imprensa, a figura de Simão foi submetida ao mesmo critério de respeitabilidade que caracteriza outros retratos e auto-retratos abolicionistas do Século XIX, em que a imagem do negro é refeita para conformar aos padrões e convenções da boa sociedade branca”, observa Rafael.
O caso mereceu também uma série de textos laudatórios. No último deles, sob a forma de versos, Paula Brito dizia: “Ninguém a Simão despreze, / Ninguém lhe negue o valor: / Simão fez atos divinos; / A virtude não tem cor”.
* Texto publicado no suplemento “Prosa & Verso” (O Globo)
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