Todo homem precisa ter seus bares de estimação. Um bar, ao menos. Por sobrevivência. Na minha lista íntima, de extensão razoável, o Villarino ocupa a linha de frente. A casa foi fundada em 1953, como informa a placa localizada logo atrás do segundo balcão, e se notabilizou por reunir, no passado, artistas e intelectuais. Hoje, fora os clientes habituais, atrai mais advogados, funcionários da Academia Brasileira de Letras, que fica quase em frente, e o pessoal que trabalha nas redondezas do Castelo.
Quem olha da rua, pensa se tratar de uma mercearia. Há, nas vitrines, toda sorte de produtos comestíveis — patês, azeites, sardela, chocolates —, além de garrafas de vinho. É um trunfo. A turma do copo pode beber em paz na parte do fundo, protegida pelo balcão da entrada. Nas pequenas mesas de tampo de mármore, contornando o grande refrigerador de madeira, fotografias em preto e branco expõem diferentes momentos da história do bar.
E que história, meu caros. Bebericaram por lá Ary Barroso, Antonio Maria, Dolores Duran, Paulo Mendes Campos, Aracy de Almeida, Sérgio Porto, Di Cavalcanti e Elizete Cardoso. Mesas fortíssimas. De talento e de birita.
O Villarino é uma casa do tempo em que boemia rimava com uísque. Embora a ala do malte ainda pinte na área, hoje divide espaço com os fãs da cerveja e do vinho. A servir os clientes, garçons à antiga: calça preta, colete, camisa social branca e gravata borboleta. Como o botafoguense Ramos, um dos mais antigos da casa, com quem sempre vale a resenha sobre a rodada do campeonato. Diz ele que já jogou bola, e bem.
Na mesa alta que fica logo na entrada, esquina das avenidas Calógeras e Presidente Wilson, uma plaqueta marca território: “Turma do Baixo Villarino”. É o canto dos que preferem beber em pé, ao fim da tarde. Da calçada, veem a cidade no letárgico movimento de volta para casa, o Centro que aos poucos se esvazia até que já não haja quase ninguém. Apenas o silêncio dos prédios, impassível.
Gosto de almoçar no Villarino. Menos pela comida — correta —, e mais pela tranquilidade de estar algo distante do turbilhão das ruas, das coisas a resolver, os abacaxis a descascar. Um pouco distante também do presente. Gosto ainda mais de, a caminho da Lapa, parar lá por uma ou duas horas. A sagrada cerveja que tapeia o cansaço e alimenta projetos que nem sempre vêm. Pouco importa.
Às vezes, quando um plano soa promissor, marco o primeiro papo no Villarino. Digamos que o bar tem referência no escaninho que guarda os encontros bem sucedidos. O mais famoso deles aconteceu em 1956.
É episódio bastante conhecido, mas que merece a lembrança. Vinicius de Moraes tinha acabado de chegar de Paris e foi ao Villarino encontrar o jornalista Lúcio Rangel e o radialista Haroldo Barbosa. Conversava com os dois amigos sobre a ideia de transpor o mito grego de Orfeu para o universo dos morros cariocas. O texto da peça estava pronto e o compositor já havia conseguido o necessário financiamento. Faltava quem fizesse as músicas.
Vinicius comentou com Lúcio e Haroldo que inicialmente pensara no pianista Vadico. Temendo a tarefa extra para as coronárias já detonadas, o parceiro de Noel Rosa recusou o convite. Dias depois, no mesmo Villarino, Lúcio sopraria no ouvido do Poetinha o nome de Antonio Carlos Jobim, que tomava sua cerveja em mesa próxima. Tom tinha, então, 29 anos. Conhecia Vinicius de vista — ambos costumavam ir ao Clube da Chave —, mas sem intimidade.
Tom trocou de mesa para ouvir a descrição de Vinicius sobre a peça. “Tem um dinheirinho nisso aí?”, perguntou logo de início. A reprimenda foi imediata. “Este é o poeta e diplomata Vinicius de Moraes. Como você tem coragem de falar em dinheiro numa hora dessas?”, retrucou Lúcio, que desconhecia a situação do novato: Tom ainda pagava aluguel e precisava de grana. Não à toa optara pela cerveja num bar em que todos consumiam uísque em larga escala.
Tendo ou não dinheirinho, importa é que foi no Villarino que a dupla, entre muitos copos, firmou o acordo para compor as canções do “Orfeu da Conceição”, inaugurando a parceria que se tornaria clássica na música brasileira e mundial.
Tom e Vinicius já se foram, assim como tantos outros frequentadores, alguns famosos, a maioria, não. A boemia mudou de cara, os bares também. Mas o Villarino continua lá, teimoso, até quando a gente deixar.
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