Abro, no meio da Redação, o livro de fotos de Bruno Veiga sobre o subúrbio do Rio. Cássia logo se aproxima. Ela é uma das repórteres e mora no suburbano bairro de Ramos. De início, apenas observa as imagens, quase todas em plano fechado. O detalhe de uma cortina colorida, o arranjo de flores, o conjunto de azulejos que forma o desenho de Nossa Senhora, dois manequins vestindo calças justíssimas.
Aos poucos, vai vencendo a timidez. “Lá em casa tem um desses”, diz, apontando para o tapete aveludado de parede. “Olha esse aquário de móvel”, espanta-se por um ínfimo, para logo acondicionar o susto no aconchego da intimidade. “Minha tia adorava esses aquários”.
Comento que meu primo também adorava, e fez uma obra na casa de vila na qual morou, em Madureira, justamente para colocar o aquário no centro da sala. Um destaque, cheio de luzes subaquáticas, para as visitas.
Alguém aponta a feiura de um armário, ou a moldura dourada dos quadros com motivos da natureza. Na foto do senhor que ajeita a bermuda branca, a aposta de que usa um daqueles sapatos nos quais basta enfiar o pé. Como se uma imagem puxasse outra, já esperada. E o subúrbio estivesse imerso em um eterno presente, que apenas reprocessa signos por demais conhecidos.
No entanto, à medida que as páginas do livro são passadas para a frente, o que parecia um conjunto de retratos-clichê ganha respiração. Reconheço o piso de cacos cor de terra que enfeitava o quintal da casa onde passei a infância. A cadeira trançada, o tapete de pano que os taxistas costumavam usar sobre os bancos de seus carros. Quadros com fotos retocadas a tinta, santos do candomblé, pregadores de roupa. Também as estantes de um bar, na caótica organização que põe lado a lado durepoxi e batida de mel, caldo de galinha e cigarros.
Chego a rir ao ver as três prateleiras abarrotadas de objetos – duendes, porta-retratos, cisnes de porcelana – e lembrar que espaços livres são praticamente um interdito no subúrbio. Se há um canto sem móveis na sala, instala-se ali uma poltrona. Se há uma ponta desocupada na estante, compra-se um bibelô qualquer.
E seguem-se papéis de parede estampados, pingentes de São Jorge, engradados de cerveja, telas de videoquê, bacias de alumínio. Vasos de comigo-ninguém-pode, gambiarras elétricas, panos de prato com o calendário do ano grafado. A tabela de preços de um cabelereiro anuncia os serviços: escova, trança, calista, massagem, sobrancelhas, rinsagem.
Sempre que me assalta a vontade de denunciar o chavão que determinada imagem encerraria, de acusar sua suposta obviedade, ela de imediato pula para fora do livro e se encaixa na vida. Tão intensa quanto efêmera. Como um balão de São João que enfeita o céu e depois provoca incêndio, para enfim se apagar.
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