A música mais remota de que me lembro é “Sonhos”. Aquela mesma que foi sucesso com o cantor Peninha e fez parte da trilha sonora da novela “Sem lenço, sem documento”, da TV Globo. Antes que me perguntem: não, não me recordo do folhetim escrito pelo Mário Prata, que foi ao ar entre 1977 e 1978 na TV Globo. Só da canção.
Tempos depois o Caetano regravou “Sonhos” com novo arranjo e a música voltou às paradas. Mas minha reminiscência é mesmo a da versão original, que eu e meu primo André, aplicados alunos da escola Cãozinho Travesso, em Marechal Hermes, costumávamos cantar durante o recreio.
André tinha seis e eu, cinco anos de idade. Gostávamos da mesma menina, a Marcinha, uma colega de turma. Era aquele tipo de amor que não escapa às circunscrições da infância, feito só de promessa. Nunca pude esquecer a fisionomia da Marcinha porque tenho imagens de um aniversário meu comemorado no colégio, e lá está ela em uma das fotos, branquinha, cabelos curtos. Como estará hoje, o que terá feito da vida? Bem, Aníbal Machado já nos ensinou, em “Viagem aos seios de Duília”, que em geral é melhor não saber.
Tornei-me fã de “Sonhos” antes mesmo de me encantar com as canções do programa Vila Sésamo – estas, sim, de compostas para crianças. Isso sempre me intrigou. André éramos meninos demais para compreender os sentidos amorosos de versos que diziam: “Mas não tem revolta não / Eu só quero que você se encontre / Ter saudade até que é bom / É melhor que caminhar vazio / A esperança é um dom / Que eu tenho em mim”.
Talvez nosso apreço pela música se justificasse pela melodia. Peninha tem inegável talento na criação de temas que grudam no ouvido, para o bem e para o mal. Ou quem sabe a gente intuísse o futuro de alguma forma, adivinhando despedidas que viriam, para dar lugar a novos encontros e novas despedidas, moto-contínuo.
André fez aniversário nesta semana – 42 anos. Por coincidência, no sábado passado, durante a festa de uma amiga em Cascadura, o músico contratado cantou “Sonhos” e me fez lembrar do primo. Os domingos de manhã no parquinho do shopping Tem Tudo, movidos a raspadinha de groselha. As subidas à Igreja de São José Operário, coroadas com a fitinha que amarrávamos no pulso fazendo três pedidos. Os jogos de War, Detetive. A brincadeira de Playmobil.
“Vamos capturar os bandidos, Piwles”, bradava o André, com o boneco do xerife nas mãos e o apelido que evocava um personagem de filme de caubói. “Eles não podem com a gente”, eu respondia. E nos regozijávamos com nosso ingênuo heroísmo, prendendo vilões imaginários antes da hora do Nescau com leite.
Cãozinho Travesso, Marcinha, Tem Tudo, André, festa em Cascadura. Há alguma coisa que insiste em voltar, hoje, quando atravesso a Avenida 24 de Maio, margeando a linha do trem, a rever as casas de muros baixos, quase sempre pichados, e as esquinas de curvas incertas onde o sentimento vence a opinião por nocaute. Alguma coisa a que não sei dar nome e que estraçalha o clichê. Toda vez que vou ao subúrbio, a infância dói em mim.
P.S. Agradeço ao Luiz Carlos Máximo e ao saudoso Luiz Carlos da Vila pelo empréstimo da expressão “esquinas de curvas incertas”, um dos versos do samba “Vila do meu coração”, sobre a Vila da Penha, que foi lindamente gravado pela Luiza Dionizio.
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