E você, como vai”, pergunto à amiga a quem não vejo há tempos.
“Ora bem, ora nem tanto. Como sempre”, responde ela.
De cá, penso se não é assim mesmo. Uma variação entre o ora bem e ora nem tanto. E a gente vai, com ginga de sambista, equilibrando-se no fio invisível que divide os dois. Danço eu, dança você, dançamos todos a dança da solidão, como nos versos da canção do Paulinho da Viola. Um samba, aliás.
Vinicius de Moraes, em uma das parcerias com Baden Powell, escreveu que o samba é tristeza que balança. Fato. Se o ritmo é capaz de despertar em cada minúscula parte do corpo o desejo de se pôr em movimento, a vontade de entrar em estado de alegria, as palavras que o embalam são tão soturnas que acabam por gerar um estranho paradoxo. Alguém que se foi e não se sabe da volta, o corpo que a morte leva, a esquina que não dobramos porque nunca chegou. Mais que nunca é preciso cantar.
Só que a vida é samba desconjuntado: letra de um lado, melodia de outro.
Na semana passada, durante a sessão de terapia, veio à tona uma cena antiga, ainda dos tempos de Madureira. Eu, criança, estava sentado na cadeira do dentista. Os pais haviam me levado ao consultório para que fosse arrancado meu dente de leite da frente, o último da série. Por causa de um acidente bem no começo da infância, o dente trincara, e por isso não caiu, como deveria acontecer naturalmente.
Antes de iniciar o trabalho, o dentista me mostrou um raio-X, no qual constava a imagem do dente de adulto, ou seja, o que iria surgir no lugar do antigo. O raio-X exibe também a raiz, de modo que visualizei aquele dente imenso, desproporcional, na minha boca, e avisei ao dentista que não, não iria deixar ele retirar o antigo.
Foi preciso que me segurassem na cadeira. Arrancaram o dente na marra, sem anestesia. No entanto não me recordo da dor. Lembro de, após a consulta, ter xingado o dentista com todos os palavrões que então conhecia — não eram poucos. Lembro da vergonha que causei aos meus pais. Mas não da dor, embora ela esteja aqui, comigo, de alguma forma.
Talvez a cena tenha sido fisgada na areia movediça da memória porque esses são dias de ora nem tanto, e a tristeza busca espelhos o tempo inteiro.
Dias de ora nem tanto, contudo, são sempre vésperas. Um silêncio turbulento, porém fugaz. Como o pássaro que, no poema de Pedro Amaral, bate asas pela casa adentro enquanto não acha a janela.
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