O homem da esquina


Ele se reveza entre dois pontos fixos: Mem de Sá com Gomes Freire, e Gomes Freire com Riachuelo. Cabelos longos e desgrenhados, é negro e parece ter por volta dos 30 anos. A se tirar pelas vestes e pela relativa sujeira do corpo, pode ser confundido com um dos tantos mendigos que moram e circulam pelo Centro do Rio. Mas só é visto ali, nessas duas esquinas da Lapa, os pés plantados no chão, os braços girando de modo febril, como se regesse uma orquestra.

“É caso típico de air guitar”, comenta um amigo, com a ironia nutrida pelo álcool consumido pouco antes. “Mero tique nervoso”, pondera outro. E o homem permanece lá, braços em movimento, ritmo inflexível, estranho aos que seguem para casa depois do expediente, aos novos boêmios do bairro, às travestis que garantem o salário realizando desejos quase sempre inconfessos.

Nunca o vi fora desses dois lugares, que assumiu como seus. A mesma postura fixa, apenas os braços se mexem. Não há desespero. Antes, há talvez uma agonia da qual tenta se livrar, aparentemente sem êxito. Uma aflição que se retroalimenta, ao contrário de cessar, nos dedilhados em sua guitarra imaginária.

“A vida é só um segundo”, escreveu Rodrigo de Souza Leão, que fez, da esquizofrenia, literatura. O delírio do homem da esquina é uma forma de pressa. Que tipo de música sustenta aquela espécie de balé, frenético, recursivo, ensimesmado? Só ele pode saber.

O homem da esquina insiste em dois locais precisos e na peculiar coreografia já há alguns anos, hoje pouca gente o nota. É como um poste, um hidrante. A Lapa passa por ele, indiferente, seja dia ou noite. Apenas mais um louco. Que não ganha, sequer, a função que costumamos legar aos loucos: o conforto com nossa própria sanidade.

“Me adoeceram”, registrou Stella do Patrocínio em um de seus poemas, como se lembrasse que o diagnóstico da insanidade é invariavelmente extrínseco. Apenas mais um louco, seríamos capazes de repetir.

Na semana passada, caminhando em direção à minha casa, esbarrei com ele de novo. Observei-o detidamente por alguns minutos, sem deixar que me visse. Então percebi que, naquele agito febril, não há paralelismo. O braço esquerdo fica um pouco abaixo do direito. É possível traçar uma diagonal entre os dois cotovelos, que alternam a cadência. Primeiro, ele move o braço direito, depois, o esquerdo, para reiniciar a sucessão que pode durar algumas horas, com os dedos em permanente inquietação. Não é uma orquestra de maestro em desvario, não é tique, nem guitarra. O homem da esquina simplesmente maneja a linha da pipa que dança, sinuosa, em seu céu particular.


O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *