Novelo


A barriga imensa de grávida roça o caixão. Dentro dele, a mãe, cujo rosto é acariciado por aquela que em menos de um mês será mãe também. O desconcerto vaza do instantâneo tão compacto de vida e morte. Embora estejam sempre ligadas, princípio e fim de um mesmo novelo, não fomos acostumados a vê-las assim, quase uma coisa só.

É a terceira vez, em três meses, que vou ao cemitério. Talvez seja efeito da idade, os pais dos amigos começando a partir todos em sequência. Dessa vez, minha ex-sogra, que a memória redesenha na gargalhada do fim de semana, copo de cerveja à mão, uma animação estridente e bonita de ver.

As palavras que poderiam ter sido ditas, o tanto a fazer, ecoam pela capela 1 do São João Batista, batendo-se contra a parede, o ponto final. A preocupação do marido da filha, e de todos ali, é preservar ao máximo o curso da gravidez. “Morte? Sou contra”, ele diz, recorrendo à frase do Woody Allen. Concordo, e admiro o modo como oferece amor à mulher, confortando-a num abraço calado.

Já no cortejo, minha irmã comenta que, ao contrário da maioria das pessoas, gosta daquelas fotos que são coladas em alguns túmulos, a lembrança icônica de quem se foi. Digo que essas fotos me assustam. Em sua costumeira sisudez, parecem solapar a alegria, congelar o morto num retrato posado e rígido, que trai o passado.

Minha irmã acrescenta que não tem qualquer problema com cemitérios. Entendo, de pronto, a frase. Nossa mãe evita ao máximo ir a enterros. Quando vai, assim que chega em casa toma banho e põe para lavar as roupas que usou. Um medo de se contaminar com a morte.

Enquanto caminhamos pelas vielas, o ambiente naïf do São João Batista se deixa ver. As flores de plástico, as esculturas pretensamente imponentes, as tumbas revelando algum descuido. Há uma negligência, talvez não intencional, que acaba por nos trazer a breve noção de nossa desimportância. Todos, ou quase todos, terminaremos ali, naqueles sulcos cavados na terra.

Enfim o cimento, o táxi, minha casa. Ao chegar, sinto uma tristeza funda, daquelas que não conseguem se expressar em lágrima. À frente da geladeira, Mila suplica por patê, miando ansiosamente. As roupas, na varanda, deixam o sol fazer seu trabalho. Muitos livros e papéis ocupam a mesa de jantar, é preciso encontrar tempo para arrumá-los.

Sento no sofá, Mila ao colo, e então percebo que esqueci de trancar a porta. Levanto, pego as chaves, faço girar na fechadura. Uma, duas vezes. À minha direita reencontro a gravura do Volpi. Sobre o fundo rosa, coloridas bandeirinhas de São João. Que naquele instante parecem estáticas demais, como se ansiassem por uma brisa que não vem, que por mais que se espere não vem.


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