Meu pai só sabia chutar de bico. Nunca deu um passe de chapa, de peito de pé, um três-dedos daqueles que provocam efeito na bola, enganando o marcador. Ele gostava de assistir ao futebol pela TV, mas ao que eu saiba nunca jogou uma pelada na vida.
Minhas primeiras experiências com a bola foram mesmo na base do bloco do eu-sozinho. Ligava o rádio na emissora que iria transmitir o jogo do Fluminense, fechava a porta do quarto e corria, chutando a bola virtual, enquanto o narrador descrevia o que se passava no estádio. Uma dança secreta e solitária com a própria imaginação.
No colégio, aproveitava a hora do recreio para me juntar aos colegas no “racha”. O campo — um pedaço do longo pátio — comportava quantos jogadores quisessem brincar. E o sistema tático era simples: todos iam para onde estava a bola — na verdade, um objeto esférico feito de caixas de achocolatado com fita durex.
Jogo ao vivo, com bola oficial, uniforme e tudo mais, só vi quando completei oito anos e consegui convencer o pai a retornar ao Maracanã. O velho era uma das viúvas da Copa de 50. Estava na final contra o Uruguai e o trauma foi tamanho que não quis voltar ao estádio. Além de tudo, torcia para o Botafogo, o que tornava ainda mais árdua a missão: eu precisava persuadi-lo a ir em uma partida de outro clube que não o seu. Mas dei um jeito. Ao chegar no Maracanã, o jogo começando, perguntei a ele: “Cadê o narrador?”. O pai riu, e me abraçou daquele jeito que só os pais sabem abraçar.
Chegando à adolescência, passei a jogar com os amigos que moravam próximo de casa. Jogávamos na rua mesmo, sobre o asfalto. As duas pequenas balizas, feitas com madeira velha e redes de vôlei usadas, dispensavam goleiro. Quando vinha um carro, a partida parava por alguns segundos. Depois recomeçava normalmente.
Foi ali, na rua, que aprendi a dar um passe de chapa, de peito de pé, um três-dedos cheio de efeito. Se não havia talento inato, que fosse na insistência.
Nelson Rodrigues, o cronista que melhor escreveu sobre o futebol, afirmava que o escritor brasileiro não manja nada do esporte, não sabe cobrar um reles lateral. Meu velho ainda estava vivo, e bem, quando publiquei meu primeiro livro, mas nunca testemunhou um gol feito por mim. O tempo todo, desde que comecei a me aventurar pelos gramados, tento desdizer a frase de Nelson. Jogo após jogo. E às vezes, quando em meio à pelada a bola sobra na reta do corpo, curta demais para a perna direita e também para a canhota, eu abro mão de ajeitar mais um pouco e mando às favas a categoria. Chuto de bico, que nem o pai, só para lembrar dele.
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