O eterno movimento mesmo do círculo
Mestre do gênero, Cortázar comparava o conto à imagem do círculo, forma geométrica perfeita, em que um ponto não pode se separar da superfície total. Diferentemente do romance, cujas possibilidades de bifurcação e abertura de novos campos revelam-se ilimitadas, ao conto não bastaria uma trama interessante: seria preciso enredá-la dentro de tal esfera. A tese de Cortázar semeia as 12 breves narrativas que compõem “Os lados do círculo”, terceiro livro do gaúcho Amilcar Bettega Barbosa, ora lançado pela Companhia das Letras.
Dotado de impressionante organicidade, o novo trabalho de Bettega funde-se acima de tudo nos vasos comunicantes que os contos estabelecem entre si, encenando uma mímeses possível do movimento do círculo, cuja linha percorre infinitamente o mesmo trajeto. A proposta fica evidente na própria estrutura da obra, erigida sobre ciclos que se encerram e recomeçam, como um moto-contínuo: os capítulos inicial e final trazem a palavra “puzzle” em seu título, e os dois ajuntamentos de contos que completam o livro – chamados pelo autor de “Um lado” e “Lado um” – sugerem, tal um espelho, reflexos invertidos de um elemento comum. Nesse jogo, as peças estão nas mãos do leitor: cada um à sua maneira deve procurar (e estabelecer) ligações entre os textos.
A evidente conexão com o legado de Cortázar, contudo, não se limita ao aspecto formal. Assumindo sem rodeios a influência, Bettega chega a transformá-lo em personagem de um dos contos. “A/c editor cultura segue resp. cf. solic. fax”, estruturado numa série enumerada de respostas a um jornalista, alude ao suposto encontro entre o protagonista e o ficcionista portenho. “Quando conheci Cortázar eu já o imitava”, admite o narrador, que oferece uma chave possível para se compreender na essência os afetos que unem as escrituras de Bettega e do argentino ao eleger, entre as razões pelas quais o “imita”, a ânsia por romper “com os códigos puídos de uma tradição literária por vezes conservadora e até reacionária, aferrada quase sempre a um realismo ilusório, que muito mais ocultava do que revelava a verdade das coisas”. Aqui, como em outras partes de “Os lados do círculo”, autor e personagem se confundem, pois tal ânsia também move Bettega. E não é de hoje.
Se em “Deixe o quarto como está”, livro anterior, ele apostava no insólito para asseverar seu questionamento sobre a obediência cega a uma idéia de “real” que comporta permanentemente uma “falta”, e nunca nos redime, na nova seleta, com intuito similar, o fantástico dá lugar à multi-leitura, à constante reordenação. A gênese é apresentar as várias possibilidades narrativas que uma história comporta.
Algumas vezes, tal prática dá-se entre textos diferentes – caso de “A próxima linha” e “The end”. Embora separados por algumas páginas e narrados de modo distinto – o primeiro com diálogos embaralhados, numa diagramação que obriga o leitor a “montá-los”; o segundo, num trajeto mais linear –, ambos vislumbram um único acontecimento, experimentado pelos mesmos personagens. Noutras, como no ótimo “Círculo vicioso”, a cadeia fecha-se dentro da própria narrativa – início e fim deslocam-se e voltam a se encontrar como uma cobra que morde o próprio rabo.
Mas todos os expedientes citados denotariam apenas “mais do mesmo” se Bettega não conseguisse encontrar uma simbiose afinada entre as formas (o plural aqui é necessário) e o conteúdo. Remetendo à Porto Alegre soturna esboçada por alguns de seus pares, como João Gilberto Noll e Caio Fernando Abreu, os personagens do livro parecem dominados pela apatia melancólica de quem tateia “sentidos” que ficaram estagnados em algum lugar ou momento pretérito. Aparentes tentativas de escape passam pela reordenação, seja do passado idílico da juventude (nos dois “Puzzle”), seja dos relacionamentos amorosos (“Crônica de uma paixão”) ou, mais prosaicamente, apenas dos móveis da casa (“Mano a mano”). Buscas por novas configurações, em geral. Inventários sobre perdas, quase sempre.
Não por acaso na maioria dos textos a noite desponta como cenário preferencial. Ambígua, a escuridão enseja “uma espécie de ausência” que apaga “as formas das coisas”, e nela os personagens de Bettega vagam como “débeis faíscas”, esgarçando suas ilusões. Assim o fazem os jovens que promovem misteriosas reuniões à beira do Guaíba, numa brincadeira aleatória na qual procuram “dialogar com o outro, com o vizinho, (…) com o ser invisível que passa o jornal por baixo da tua porta todas as manhãs”, e tentam vislumbrar algum jeito de “se acharem vivos”. Os mesmos amigos, já não tão jovens, retornarão nas últimas páginas personificados em recortes de papel que guardam “pedaços de vida”, “gritos de socorro”, ou “retratos falsificados, meras tentativas, inúteis, de dar sentido àquelas vidas”, como um “puzzle a ser formado”.
Na epígrafe do livro, Amaro Barros assinala que o “esforço inútil para ir a qualquer lugar” explica-se porque, “com seu centro fixo, um quadrado em movimento gera o círculo que o aprisiona”. Movimento que encerra, portanto, um eterno retorno, sinalizado com nitidez por todo o livro e ainda mais nas palavras do repórter protagonista de “Círculo vicioso”. Ao desenhar uma linha sobre a folha de papel, ele digressiona: “Eu poderia continuar traçando esta linha indefinidamente (…), acabaria a página mas eu seguiria riscando sempre em linha reta, acabaria o território da cidade, do país, mas eu seguiria, cruzaria os campos e as coxilhas, depois as montanhas, os mares, sempre à frente através da superficie terrestre. Parece um caminho infinito mas na verdade há um fim: quando eu terminar a volta e chegar de novo aqui, (…) nesta página, no mesmo ponto onde comecei. Só que aí, com o círculo fechado, já não há mais início nem fim, e eu fico perdido no meio do trajeto, preso, não no meio do círculo mas no próprio círculo, como um elemento dele”. Eis o drama de Bettega. E, por que não?, também o nosso.
* Resenha publicada no suplemento Prosa & Verso (O Globo)
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