Tempo de morangos mofados


Ao receber a folha com o resultado do exame a que se submetera e onde em letras geladas constava a palavra “positivo”, Caio Fernando Abreu talvez não imaginasse que ali estava, mais do que o prenúncio de morte, o início de uma completa reviravolta em seu modo de ver o mundo — e de escrevê-lo. Diante da perspectiva do confronto iminente com o fim, imposta pelo HIV naqueles anos 90, o sol negro que até então semeara melancolia em sua obra se tornaria claridade pura, intensa, regeneradora.

Essa mudança, flagrante nas crônicas a que se dedicou em seus últimos anos e nas cartas remetidas a amigos e parentes, transpareceu de forma ainda mais concreta no olhar que passou a legar aos escritos passados, nos quais chegaria a promover alterações. A mais visível delas, a tênue (mas significativa) adição de um hífen no título de Inventário do irremediável, seu primeiro livro de contos. Na revisão feita 25 anos após o lançamento, Caio transformou a fatalidade daquele “irremediável” num “ir-remediável” — que pode ser reparado.

A imagem de seu corpo alto e magro me vem à lembrança ao assistir ao documentário Pra sempre teu Caio F., de Candé Salles. Para além da dispensável dramatização, com uso de ator, de episódios da trajetória de Caio, o filme revela como vida e obra caminharam de mãos dadas ao longo dos 48 anos em que o escritor esteve entre nós. As cenas mostram, por exemplo, o período no qual morou em Londres, que acabaria por inspirar a peça Pode ser que seja só o leiteiro lá fora. Contemplam também as referências à astrologia, levadas ao paroxismo em Triângulo das águas, livro cujas três novelas relacionam-se com os arquétipos dos signos de peixes, escorpião e câncer.

Nos depoimentos de amigos, e do próprio Caio, é possível vislumbrar certa inadequação, uma percepção de não lugar, que se reflete em contos como “O mar mais longe que eu vejo”: “Eu tinha qualquer coisa como andar de costas, quando todos andam de frente. Qualquer coisa como gritar, quando todos calam. Qualquer coisa que ofendia os outros, que não era a mesma deles e fazia com que me olhassem vermelhos, os dentes rasgando as coisas, eu doía neles como se fosse ácido, espinho, caco de vidro”.

É curioso pensar que, há 40 anos, seus livros já expunham um mundo cada vez mais fragmentário, labirinto no qual a busca por sentidos não raro terminava em impasse. “Tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou esse nó no peito, agora faço o quê?”, indaga um dos personagens de Morangos mofados, sua obra mais conhecida.

Desconfio que uma das razões do sucesso de Caio tanto tempo após sua morte seja justamente essa perplexidade que se repete, que ecoa nas paredes ásperas de 2015. “Cada dia, quando abro o jornal, tenho um novo choque e uma revolta que se acumula e, logo após, uma terrível sensação de inutilidade (…) Nos contatos que eu tenho com gente da minha geração, ou de outras, mas unidos pela mesma lucidez, percebo de maneira intensa a mesma sensação de abandono e de inutilidade. Sobretudo de impotência”, escreveu ele à amiga Hilda Hilst, em carta datada de 1970. Tão longe, tão perto.

Ao testemunhar, nos últimos tempos, o recrudescimento de alguns de nossos piores pesadelos autoritários, cadernos de cultura sendo extintos, tantos amigos desempregados, editoras de livros a se desminliguir, penso se não estamos nós, também, sentindo o mofo dos morangos tocar o palato. Um gosto acre que, contudo, não pode nos roubar a capacidade de cultivar morangos outros, “vivos, vermelhos”. Ou ao menos tentar.

Foi o que Caio efetivamente fez. Frente a frente com a morte, que o levaria em 1996, ele decidiu plantar rosas e viver cada dia “arrancando das coisas, com as unhas, uma modesta alegria”. Talvez já tivesse então desvendado o segredo da árvore mágica que, apesar de fincada num terreno taciturno e sombrio, encanta o protagonista do conto “Caixinha de música”: extrair do emaranhado de dor, angústia fria e solidão escura a beleza a ser lançada para fora.


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