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O porquê do uísque, e não da cachaça

O porquê do uísque, e não da cachaça


Semana passada, em meio à pesquisa para um artigo sobre a crônica carioca, reencontrei o livro Samba falado, que traz 53 textos, escritos entre 1950 e 1970, nos quais Vinicius de Moraes fala de música popular brasileira. A faceta de cronista talvez seja a menos célebre entre as tantas que o poeta, compositor e diplomata assumiu ao longo dos 66 anos de vida. Mas o que se depreende da compilação é que, como afirmou certa vez Antonio Candido, em suas crônicas Vinicius “conversa como dedilhava o violão”.

O despojamento que marcou a vida pessoal do escritor, sempre sob olhares enviesados do Itamaraty, ecoa em textos como “Elizeth no Municipal”, no qual ataca o “esnobismo” da música erudita, evocando um dos maiores expoentes do gênero: “Quando Bach escrevia obras de gênio para serem executadas durante a missa, escrevia para o povo que frequentava as igrejas, e não para os senhores esnobes que sabem (ou será que sabem?) o que é fuga e contraponto”.

Em tom semelhante, Vinicius prega a dissolução das fronteiras que separavam os militantes favoráveis dos opositores às mudanças trazidas pela bossa nova. Na resposta a artigo do amigo Lúcio Rangel, datada de 1959, ele confessa sua irritação “ao ver fecharem uma arte tão ‘comprometida’, tão engajada (…) com a vida, em compartimentos estanques, como vocês, os ‘puristas da música popular’ fazem com relação ao jazz e ao samba”. “Mas, Deus do céu, é tudo uma música só”, pondera. “Ninguém tem culpa de nascer preto ou branco, nem de morar seja no morro seja em Copacabana. O que é errado é o preto do morro querer bancar Nelson Cavaquinho. Não adianta enquadrar a música porque ela não se deixa enquadrar.”

O Poetinha defende a ligação atávica entre vida do artista e a criação, um vínculo similar àquele que conecta as experiências pessoais do cronista com a crônica que produz. Em “O novo samba”, ele reitera essa percepção: “Não se pode pedir a um Antônio Maia, a um Luís Bonfá, a um Paulinho Soledade, a um Fernando Lobo que façam samba de morro, samba de batucada, porque se eles o fizessem estariam praticando uma contrafação”, pondera, antes de oferecer a si mesmo como exemplo: “Estou tentando fazer um tipo de samba assim, embora procurando torná-lo mais afirmativo, menos lamuriento no que exprime. Mas não há como fugir. Ainda há pouco numa música em parceria com Antônio Maria, eu falava em ‘copo de uísque’. Houve quem protestasse. Mas mantive. Não sou bebedor de cachaça e sim de uísque”.

Vinicius era mesmo do scotch, que aparece em várias outras histórias. Uma delas, passada em Londres, ao lado de Baden Powell, resume o modo como viveu e escreveu a própria vida — em crônicas, poemas e canções. Ele e Baden devoravam um pé-de-porco, devidamente acompanhado de uísque, quando o cronista notou que o amigo estava “mal à vontade, como se alma não lhe coubesse no corpo”. Na esticada pós-jantar ao bar do hotel, abriram mais uma garrafa do “divino centeio”, e Baden enfim confessou: recebera uma proposta, “à base de uma ‘erva considerável’, para se tornar concertista. “Poeta, ele suplicou. Não deixa eu ser concertista não… Eu não quero esse troço não… Eu quero é fazer o que eu faço, misturar popular com erudito (…), compor com você, escutar o Tonzinho, essas coisas”, relata o cronista, que, em seguida, serviu mais duas doses e recebeu do parceiro “um sorriso abissínio, de alívio e bem-estar”. Os dois, então, chocaram seus copos e beberam à amizade.


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