Entre os velhos gordos travestidos com os vestidos das próprias mulheres, o palhaço errante com a lata de cerveja na mão, a moça que beijava o rapaz de modo tão sôfrego quanto falso, entre as bocas que ali davam o primeiro dos tantos beijos que dariam nos dias que seguiram, entre vendedores de bebidas e salsichões, entre marchinhas desgastadas mas sempre novas e sambas e batuques e tamborins desafinados de tamanha animação, entre a alegria exasperada daquela pequena multidão de pobres-diabos na sacrossanta missão de ser feliz a fórceps, estava eu.
E minha missão, após desistir do sono cedo, após vestir o jeans e a camisa Hering com a frase do Sartre, era apenas mendigar um pouco do que sobrava sobre o chão cinzento da Cinelândia, a praça tomada por sorrisos, os brancos dos dentes contrastando com as fagulhas esparsas dos paetês, a luz fugidia batendo nas roupas baratas compradas no Saara, sobre chapéus, máscaras, narizes, brincos, panos, anéis, pessoas em suas dores domadas. Queria as moedas que eles guardavam nos bolsos. Queria o seu ouro.
Pois ali, em frente ao coreto repleto de senhores de terno e gravata segurando como podem seus cachês de uma vez ao ano, eu era apenas um confete temporão, o confete molhado do depois, largado num canto do piso que não chegou a secar de todo apesar do sol incipiente de uma manhã de quarta-feira de cinzas; abandonado após o vôo sublime e ligeiro do saco plástico ao ar, do ar ao rosto do folião suado e de sua pele molhada enfim ao chão. O confete da quarta quando ainda era sexta e o carnaval sequer começara, embora as pessoas transpirassem expectativas.
A pequena multidão e eu, que não fazia parte dela. Éramos dois entes, radicalmente opostos, yin yang, homem mulher, dia noite, glória fracasso. Ela, ritmo; eu, melodia. Bebia do ouro que me sobrava caindo dos bolsos alheios para ganhar forças e procurar, esticando os olhos através de toda a gente, as formas curvas de uma borboleta branca. Encontrá-la: para isso levantei-me da cama, vesti a calça jeans, a camisa Hering com a frase do Sartre e peguei o Metrô. Na praça, meu olhar atravessava a multidão em linhas sinuosas, tentando precisar o desenho da tal borboleta, como se eu pudesse, munido de uma daquelas tesourinhas sem ponta que fingem não machucar a infância, recortá-la com precisão em meio ao caos consentido.
Procurei entre o casal que se lambia, encostado na pilastra. Procurei debaixo do coreto e no oco da corneta do músico de cabelos grisalhos. Cutuquei entre as latas de cerveja recolhidas para reciclagem. Dentro da cartola do garoto vestido de mágico. Investiguei as saias vermelhas das meninas que se queriam ciganas, sob a peruca de palhaço de cabelos verdes. Tentei achá-la na entrada da igreja evangélica voltada para a praça, no banheiro do bar onde os bêbados brindavam a qualquer coisa. Conferi ainda os colares de conchas de uma baiana, o cocar colorido de um índio americano, a vassoura de uma bruxa.
Ela, contudo, não estava. Talvez num próximo bloco, numa próxima festa, num próximo baile, num outro dia de marchinhas, de sambas, serpentinas, confetes, de velhos gordos travestidos com os vestidos das próprias mulheres, de coretos e sorrisos desalinhados, de beijos e trepadas rápidas, bate-bolas e odaliscas, de bebidas e salsichões, de brilhos fugazes roubados do cotidiano, de algazarra e alegrias compulsórias como a casa própria.
Continuaria procurando. A borboleta branca que um dia pousou em meu ombro e se foi, antes que pudesse amá-la. A borboleta que, jurei a mim mesmo, viveria mais do que um dia, contrariando as leis naturais da espécie. A borboleta que batia suas asas delicadamente dentro de mim enquanto permaneci ali na Cinelândia, vestindo apenas minha calça jeans e a camisa Hering com a frase do Sartre, ainda assim fantasiado.
Conto publicado no livro Somos todos iguais nesta noite • Rocco
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