Uma sombra logo serás

Sombras de uma América à deriva vistas por um profeta da decadência

Parece sem dúvida tentador, a quem termina de ler “Uma sombra logo serás”, atribuir a Osvaldo Soriano o traço de certos escritores, capazes de formular verdadeiras profecias em suas histórias. Afinal, o romance, escrito pelo argentino em 1990, sete anos antes de sua morte, e relançado em boa hora pela Relume Dumará, desenha um cenário de abandono, desamparo e decadência, quadro que hoje espelha seu país, mergulhado numa decadência econômica da qual descendem outras crises, de fulcros sociais e morais.
Analisar o livro apenas sob esse viés, contudo, representaria injusta limitação. A crítica bem-humorada às conseqüências da globalização se faz presente em diversas situações, como a ocorrida em certo momento entre dois personagens, que combinam se encontrar, caso saiam do país, via American Express. Algumas páginas à frente, outro exemplo flui do diálogo revelador cujo subtexto resume a questão do poder da influência estrangeira. “Se você fala em outra língua, imediatamente eles baixam a guarda”, diz Coluccini, ex-dono de circo que fracassou “porque a nação toda transformou-se num picadeiro”. “Sempre dá certo?”, pergunta o protagonista. “Quase. É preciso mostrar o dinheiro, é claro”, responde em seguida. Ironicamente, o narrador então observa que o maço de notas nas mãos de seu interlocutor esconde uma pilha de papel recortado.
Essas, entretanto, são alusões pontuais, pois para além da perplexidade de um narrador anônimo diante de um quadro econômico caótico, a obra reflete a ruína do estado de espírito desse indivíduo que ingressa no século XXI sem perspectivas. Imbuído de um sentimento análogo ao daqueles andarilhos que Wim Wenders criou no âmbito do cinema, o personagem principal de “Uma sombra logo serás” vaga pelas cidades de uma América Latina onde, nas palavras de Caetano Veloso, “tudo ainda é construção e já é ruína”. A topografia em que está enredado acentua tal vulnerabilidade. Por onde trafega, o narrador, profissional de informática desempregado, depara-se com postos de gasolina, estações de trem e imóveis abandonados, não obstante a impressão de prosperidade pretérita.
O desejo de fuga transparece tanto na imagem do protagonista quanto na de seus companheiros de viagem, entre os quais, ao lado de Coluccini, outros dois se destacam: Nádia, vidente que circula tentando ler um futuro melhor para os que a procuram; e Lem, ex-banqueiro cuja meta imediata é ganhar uma bolada em algum cassino da região.
A eles se juntam padres fajutos e escroques em geral, tipos fellinianos que ganham dimensão simbólica, sinalizando para a decadência que atingiu cada um desses campos: as finanças, a religião, o lazer, as forças armadas. Suas apostas, os jogos a que se dedicam por todo o tempo, parecem de pronto perdidos, os dados estão viciados. A caminhada é uma condição permanente, que merece seguidas menções: os nomes de diferentes automóveis, o hotel chamado “Automóvel Clube”, o vinho da marca “Roda”.
Entre encontros e desencontros, forma-se uma espécie de labirinto, do qual não conseguem escapar. “Estávamos todos presos naquela teia de aranha, caminhando pelas beiradas como insetos que procuram dar um salto desesperado”, afirma o narrador, que sonha freqüentemente com salas asfixiantes, das quais a fuga se mostra impossível. Nessa trilha, andam em círculos atrás de uma pátria segura porém improvável, cuja única saída seria caminhar, como aconselha o velho Coluccini: “Eu sou um velho andarilho… No caminho, quando tudo parece perdido, sempre resta uma última manobra. Um golpe na direção certa, uma reduzida, qualquer coisa, mas o freio, jamais. Você toca no freio e está perdido”. Esquecendo esse conselho, alguns poucos optam, no romance, por pisar no freio.
A sombra a que alude o título, verso emprestado do “Caminito”, tradicional tango, acentua o sabor portenho do livro, porém serve sobretudo para sublinhar a idéia principal que emerge de suas páginas. Os personagens, como o protagonista confessa em certa ocasião, têm a sensação de que já não existem para ninguém. “O que nos atraía era olhar a nossa própria sombra derrubada, e talvez fôssemos nos confundir com ela dentro de pouco tempo”, lamenta-se. Já não há grandes sonhos para sonhar, megaprojetos nos quais apostar, apenas recordações, e nem sempre as melhores. A juventude anda de fones nos ouvidos e sequer se dispõe a dialogar. É, no entanto, a memória que surge como o último recurso antes do precipício, e que vira ficha nas mãos do narrador até mesmo quando, em desespero, resolve tentar a sorte no pôquer.
As lembranças sangram essa América sem rumo, gerando cenas patéticas, como a encenada por Coluccini, que, recorrendo ao passado, faz um belo número circense e termina no chão, ferido, pois ladrões haviam roubado parte dos fios de cobre sobre os quais se equilibrava. Nesse vale-tudo, no “salve-se quem puder” onde a sobrevivência implica retirar a base alheia, queda um continente à deriva, cansado de guerra, que a exemplo do protagonista se confessa “sem coragem suficiente para tocar adiante, nem voltar atrás”. Solidário a esses pobres-diabos, Soriano lhes reserva um olhar terno, capaz de enxergar grandeza mesmo em sua miséria, sapiência na humildade. Como a que desvela o comentário de Coluccini, sobre a arte do circo: “Há um momento para se retirar antes que o espetáculo fique grotesco. Quando a gente está no picadeiro, percebe. O pessoal pode estar explodindo de tanto aplaudir, mas se você for um verdadeiro artista, sabe”.

 
* Resenha publicada no suplemento Prosa & Verso (O Globo)


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