A beleza triste de um quase nada perdido na memória
Em “Elegia: indo para o leito”, o poeta inglês John Done compara sua musa a “um livro místico”, ressalvando que somente “a alguns é dado lê-la”. Pois esta tentativa de “ler”, ou decifrar, os mistérios de uma mulher é o que move o narrador de Um beijo de Colombina, novo livro de Adriana Lisboa. Na obra, lançada pela Editora Rocco, a mulher em questão é Teresa, escritora que desaparece após um mergulho no mar de Mangaratiba. Teria morrido? Num imã na geladeira da casa dela, os versos de Manuel Bandeira, sobre quem ela fazia um estudo, sugerem suicídio: “Nas ondas da praia, nas ondas do mar, quero ser feliz, quero me afogar”.
A partir do sumiço, seu companheiro João vai tentar por intermédio da escrita reorganizar, para melhor compreender, os acontecimentos ocorridos nos oito meses em que conviveram. Como prefere ele, “encontrar, ou criar, uma moldura para tudo aquilo que acontecera sem explicação”. Acompanhando tal busca, o leitor passa a conhecer, no tempo presente e em flashbacks, todo o desenrolar da relação entre o casal, do idílio ao verdadeiro buraco existencial em que ele se vê confinado ao ficar só. João remexe os trabalhos inacabados de Teresa, procura entender as razões do interesse dela por Manuel Bandeira, e acaba embarcando numa espécie de viagem temporal movida pelo objetivo de retirar “alguma moral” da história daquele período “que não se encaixa em nada”.
A trama desenrola-se através de um Rio de Janeiro cuja topografia é bastante conhecida. O narrador percorre os bares da Lapa, as ruas de Vila Isabel, a movimentada Praça da Bandeira, lugares onde a lembrança de Teresa é quase uma presença física, mesmo quando inesperadamente uma ex-namorada surge para cuidar dele. A alimentar as desventuras de João, aparece novamente o elemento-base dos dois ótimos livros anteriores de Adriana, e que parece ser mesmo o tema que amalgama sua Literatura – a memória. Em termos formais, a narrativa de Um beijo de Colombina prima pelo lirsmo e pela sofisticação, fundando-se em duas dimensões distintas porém complementares: ao tempo em que lança um olhar doce em relação ao amor, funciona, paralelamente, como uma deliciosa investigação cujo objeto é o próprio processo literário.
A partir da paixão de Teresa pelo escritor, o romance sustenta um profícuo diálogo com a poesia de Manuel Bandeira, centrado primordialmente no livro Estrela da vida inteira. As alusões são muitas: o nome de Teresa, o título da obra e de todos os seus capítulos, a rua Moraes e Vale, onde o poeta morou, e os versos que, distribuídos em meio à prosa de Adriana, inserem-se perfeitamente na narrativa (sempre com o cuidado do uso do itálico). Contudo, o mais relevante elo entre Um beijo de Colombina e a poética de Bandeira descortina-se na essência a que anseiam, no espírito que os anima.
Bandeira defendia a idéia de que “a poesia está nas coisas – tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas”. Nas pevides de uma maçã, era capaz de ver “palpitar a vida, infinitamente”. Adriana fala que “o amor é um milhão de pequenas coisas (…), uma flor murcha, um marcador amarelo de textos, um disquete de computador, uma chave de fenda, um quadro de avisos onde se espeta um bilhete, um peso de papel azul que reproduz o globo terrestre, uma cama desfeita ao meio-dia e um copo d’ água pela metade, folhas secas que o vento varreu para dentro de casa, um vulto sombrio nos olhos por causa de uma discussão com alguém, a pequena escultura mexicana de um pássaro, guardanapos de papel sobre a mesa-de-cabeceira, alguém que martela um prego em outro apartamento, uma lista telefônica aberta, mais nada”.
Ambos querem, pois, o encanto que se esconde por detrás do que é aparentemente banal. “Desentranhar a poesia deste mundo”, como assevera o narrador do romance. Ver acender o sublime em “pequenos nadas”, nas palavras de Bandeira. Evidentemente, não se referem à “hostil”, gritante e hiperexposta beleza das “capas de revista”. A ânsia é por uma beleza “perdoável”, como a de Teresa; silenciosa, tal a lua nova, que “diz coisas em segredo”. E a prosa de Adriana mostra-se coerente ao refletir com suavidade e ternura (que não devem ser confundidas com falta de vigor) as pequeninas iluminações que, como “beijos de Colombina”, chegam a tocar João. Na fluência salpicada de poderosas metáforas, soam perturbadoras apenas as bruscas digressões por meio das quais a autora, decerto na intenção de sublinhá-la com tintas fortes, explicita sua (pertinente) crítica à “indústria do belo”.
Trata-se de reparo menor num livro que transborda delicadeza e em cujo subtexto lateja a idéia de que o amor e a arte têm de fato a capacidade de elevar ao sublime instantes que no caldo morno do cotidiano possam aparentar insignificância. A força de tal premissa está emblematicamente expressa no prisma afixado na porta da varanda da casa de Teresa, a mesma “varandinha de outrora” que ainda existe, pois “foi apenas o outrora que se acabou”. “Aquele pequeno prisma de vidro, que lançava mil arco-íris, borboletas acesas e inquietas, pelas paredes”, mudando o foco e permitindo-lhe encontrar a beleza “que está nas frestas deste mundo, e que a tudo invade, quase secreta, tão silenciosa”. “A beleza gloriosa de um quase nada”, em suma.
* Resenha publicada no suplemento Idéias (Jornal do Brasil)
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