Paulo Emílio examina a burguesia
Foi com surpresa que os amigos mais próximos se depararam, em 1977, com as três novelas que Paulo Emílio Sales Gomes escrevera em segredo alguns anos antes e acabavam de chegar às livrarias. Professor, ensaísta e crítico de cinema já consagrado, Paulo Emílio investia pela primeira vez no terreno pantanoso da ficção e, na insegurança de autor iniciante, buscava acenos que pudessem ratificar a qualidade dos textos. Não houve tempo: seis meses após lançar o livro, um infarto fulminante o matou.
Pois aquelas novelas, reunidas sob o título “Três mulheres de três PPPês”, estão sendo reeditadas pela Cosac Naify, em caprichado volume que inclui posfácio do organizador Carlos Augusto Calil, trechos suprimidos pelo autor e fortuna crítica, com ensaios de Zulmira Ribeiro Tavares, Modesto Carone e Roberto Schwartz, entre outros. No livro, a narrativa original foi restaurada a partir do cotejo entre as edições anteriores (Perspectiva e Nova Fronteira) e os manuscritos do autor, hoje depositados na Cinemateca Brasileira.
Com “Três mulheres de três PPPês”, a Cosac Naify dá início ao relançamento de toda a obra de Paulo Emílio. Até 2008, chegarão ao mercado uma novela inédita (“Cemitério”), estudos sobre a Sétima Arte (como “Vigo, vulgo Almeryda e Jean Vigo” e o seminal “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”), uma seleta de correspondências que abarca cartas trocadas com Glauber Rocha, além de toda a crítica produzida para o célebre Suplemento Cultural, com organização temática.
No livro reeditado, Paulo Emílio esquadrinha a asfixia de uma classe social que se assemelha, como assinala Roberto Schwartz, a “uma espécie zoológica em extinção”. A frivolidade, o teatro de aparências e o desejo permanente de ascensão típicos da burguesia são dissecados com ironia e algum sarcasmo. A narrativa abriga esse tom mordaz sob um tratamento convencional, à beira do pomposo. Isso em plenos anos 70, fase na qual a literatura brasileira em grande parte apostou em experiências formais.
O único sinal de quebra dos códigos protocolares se dá na liberdade com que o autor manipula normas como a colocação de pronomes e vírgulas, numa violação que obedece tão-só aos ditames de sua “gramática interior”. O aparente convencionalismo, no entanto, não é capaz de solapar o espírito moderno que anima o livro. Como observa Schwartz, ao invocar elementos já superados do modernismo, como as contrariedades conjugais e a “prosa engomada”, Paulo Emílio quer é “expô-los ao vexame”.
As três novelas apresentam pontos de interseção, como a ambientação em Águas de São Pedro – – instância que o autor freqüentou na companhia da mulher, Lygia Fagundes Telles – e o fato de os três narradores se chamarem Polydoro, nome que detestam. Além disso, enredam-se com mulheres ardilosas, vendo ruir as bases precisas e seguras nas quais se sustentavam a partir do instante em que algo é revelado. Há sempre um buraco à espreita nas histórias de Paulo Emílio.
Em “Duas vezes com Helena”, o bem-sucedido Polydoro vai descobrir, depois de algumas décadas de remorso, a verdade sobre o caso relâmpago que teve com a esposa do velho professor de quem era discípulo. Valendo-se de expediente semelhante ao campo/contracampo tão caro ao cinema, Paulo Emílio contrasta os relatos do protagonista e de Helena, a partir do qual Polydoro se esvazia, como uma bola de gás levemente furada.
Na segunda novela – “Ermengarda com H” -, o narrador desliza no ritmo da reviravolta que a leitura de dois diários escritos pela mulher, com registros conflitantes sobre a vida conjugal, suscitará em sua imaginação. Assim como na história inicial, Polydoro divide com o leitor os pormenores de suas minuciosas análises sobre cada acontecimento. Ele acredita que “a pura reflexão interior é a ultima instância do conhecimento”. Mas diante da leitura dos cadernos, sente fraquejar as certezas que até então alimentara.
No decorrer de “Ermengarda com H”, aliás, Polydoro faz uma confissão que serve como síntese desse personagem que Paulo Emílio qualifica como o burguês característico. “Minha perspectiva de vida conjugal era simples, serena e saudável. Trabalhar o dia inteiro para aumentar o patrimônio. Uns dois filhos. Aos domingos e feriados, passeios instrutivos. Férias anuais em praias tranqüilas. (…) Em suma, meus sonhos juvenis de suprema elegância, poder e cultura tinham se reduzido a um nível bem paulista”, observa ele.
Fechando a tríade, “Duas vezes em Ela” expõe os conflitos de um casal cuja diferença de idade é grande, explorando temas como o adultério e a impotência sexual. Mais uma vez, a imagem que Polydoro tinha da mulher em dado momento se esfumaça. “Acabara de descobrir Ela e ao mesmo tempo a perdera”, diz ele, numa frase que poderia perfeitamente ser repetida pelos protagonistas das duas outras novelas.
Essa recorrência, presente nos campos subjetivos dos Polydoros e de suas mulheres, reflete um estado de coisas externo. As alusões à Guerra Mundial, ao nazismo, ao comunismo e ao Golpe de 64 apontam para as mudanças rápidas e radicais que marcaram o epílogo da modernidade, mas o livro não se limita ao comentário sobre sua época, antecipando questões da temporada que viria, como a rarefação dos conceitos e a multiplicidade de explicações que pouco ou nada explicam.
É nesse entorno que Paulo Emílio lapida a pedra angular das três novelas: a sistemática recusa à identidade, evidenciada no desagrado dos protagonistas com o próprio nome. Submersos no turbilhão de imagens falsas de uma classe social que alimenta os próprios fantasmas com os quais se assustará, seus Polydoros incorporam a célebre frase de Marx: como tudo o que é sólido, também eles se desmancham no ar.
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Personagem de inequívoca referência na vida cultural brasileira durante o século passado, Paulo Emílio Sales Gomes praticamente inaugurou a crítica cinematográfica no país. Sua fascinante trajetória – narrada no livro “Paulo Emílio no Paraíso”, de José Inácio de Melo Souza – inclui a prisão por motivos políticos, a organização daquela que hoje é a Cinemateca Brasileira e a fundação do curso de Cinema da Universidade de Brasília, além da colaboração para revistas como a antológica Clima, da qual participou ao lado de ensaístas do porte de Antonio Candido e Décio de Almeida Prado. Graças a Paulo Emílio foram exibidos pela primeira vez no Brasil filmes dos irmãos Lumière, da Vanguarda Russa e do Expressionismo Alemão. Crítico das estruturas burguesas, ele foi também precursor na luta pela preservação da memória do cinema brasileiro, que defendia radicalmente.
*Resenha publicada no suplemento Prosa & Verso (O Globo)
fatima batista
16 abril
amei seu site, ets muito gostoso de ler.
beijos
gostei da foto
Vanessa Johnson
27 abril
Parabéns pela preocupação com a palavra e pelo bom gosto na programação visual do teu site. Vanessa