Integração entre conteúdo e forma
A precisa construção da trama – traço raro entre os autores da chamada novíssima geração – é apenas a qualidade mais evidente em Toda terça, obra com a qual Carola Saavedra estréia nas searas do romance. Chega a surpreender que uma escritora debutante no gênero demonstre tamanho domínio sobre o eixo da história que conta. Em verdade, duas histórias, que correm paralelas e harmônicas ao longo das mais de 100 páginas da primeira parte e se interligam na etapa final, revelando paradoxalmente que, mesmo ao se fechar num encadeamento lógico, toda narrativa mantém certas zonas de sombra.
Um dos vértices do enredo é Javier, migrante latino-americano que vive em Frankfurt, mora de favor na casa da namorada Ulrike e faz bicos como passeador de cachorros. Ele parece perdido na Europa, onde se encontra preso a um círculo de dias que simplesmente se somam uns aos outros, sem maior significado. Carola sinaliza, já a partir de Javier, que a questão do exílio aparecerá com um dos elementos fundadores do livro, mas, ao desenhar o personagem, não recai na figura-clichê do estrangeiro. Mais do que o olhar de estranhamento, o foco se coloca sobre a incomunicabilidade – seja de Javier com Ulrike, seja de Javier com seu tempo.
Laura, uma estudante cheia de dúvidas que se submete à terapia bancada pelo amante casado, é outra ponta da história, transcorrida no Rio de Janeiro. A relação com o analista Octavio, coalhada de joguinhos, mentiras e jocosidade, reflete sua postura diante da própria existência: imaturidade e resignação. Laura nos é apresentada a partir dos diálogos travados durante as sessões no divã de Octavio, que iluminam, mas apenas parcialmente, a apatia que a domina. À medida que o enredo avança, sinais sutis indicam que os fios alongados de parte a parte nas trajetórias da jovem estudante e de Javier, apesar da aparente discrepância, em algum instante vão se deparar.
Isso acontece no epílogo, quando a esses dois protagonistas, ambos com vozes narrativas próprias, se somará um terceiro, cujo ponto de vista até então permanecera oculto. As peças então se encaixam, e ainda assim algo não se fecha. Parece que todos os movimentos por intermédio dos quais a autora conduziu o leitor desembocaram num vão onde os sentidos são rarefeitos – e no qual, sobretudo, rareiam os afetos.
O cinismo de Javier e a indiferença de Laura bóiam nesse vácuo tão peculiar de nossa época, fincando de modo incisivo o romance de Carola na contemporaneidade. Durante uma de suas caminhadas solitárias ao amanhecer, Javier observa que “os remanescentes da noite e os precursores do dia” são, ao mesmo tempo, “tão diferentes e tão parecidos em sua irrealidade, em seu torpor”. Pois a impressão é que tanto ele, quanto Laura, e talvez muitos de nós, estamos também mergulhados nessa madrugada que não termina. Entre os tempos, entre as coisas, entre os lugares.
Em dado momento do livro, o próprio Javier verbaliza essa condição, ao confessar seu fascínio pelo “quase, por tudo o que fica faltando um espaço”. Um dos grandes méritos da autora, aliás, é conseguir uma perfeita integração entre conteúdo e forma. A estrutura, fragmentada em três vozes, impede desde o princípio qualquer visão totalizante. Assim como os personagens, o texto de Carola é tecido pelas brechas, como se a autora tivesse a consciência de que nunca será possível apreender de vez o elemento intangível que tantos escritores procuraram com sua literatura: um sentido.
Contudo, se digno de aplauso, o pleno apuro técnico na condução da história parece em alguns momentos impedir que a autora rompa seu estrito compromisso com a narrativa. A exemplo dos grandes intérpretes da canção, os escritores às vezes precisam assumir o risco de desafinar para voar alto, tocando mais próximo da vida e menos da escritura. Trata-se, porém, de um pequenino reparo, ainda menor se lembramos novamente que Toda terça é o romance inaugural de Carola.
Até porque, quando liberta da urdidura literária, a autora consegue atravessar essas margens, aproximando-se daquilo que Javier apenas tateou quando, numa noite qualquer, se viu a sós com Camilla no apartamento de Ulrich. A presença de Camilla, que também morava lá, costumava lhe ser incômoda. Naquela ocasião, no entanto, ganhou ares de “um segredo esquecido, de uma visita inesperada”. Os dois jantaram juntos, e lentamente o olhar dele foi se modificando. Num longo e belíssimo parágrafo, Carola registra em imagens sucessivas as minúcias da repentina afeição de Javier: a pizza, os cílios de Camilla, a taça de vinho, o sorriso de Camilla, o silêncio, o rosto de Camilla… Na descrição daquele instante, naquele ínfimo pedaço de tempo quase estacionado, a gente pode até reconhecer que, como insinua o livro, algo se perdeu – mas é também capaz de acreditar que não foi para sempre.
* Resenha publicada no suplemento Idéias (Jornal do Brasil)
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