A palavra inútil
Paul Valéry distinguia o discurso poético por sua inutilidade. Sob esse prisma, os versos não atenderiam a necessidade alguma, exceto àquelas que eles mesmos são capazes de criar – e se atrelam, de modo quase compulsório, “a coisas ausentes, ou a coisas profundas e secretamente sentidas”. “Sonho interrompido por guilhotina”, o novo livro de Joca Reiners Terron, destila a máxima de Valéry no alambique da prosa.
Mais do que uma seleta de contos, o volume lançado pela Casa da Palavra é um quase-romance, composto de 16 narrativas sobre as quais paira uma questão-chave: o ceticismo sobre a possibilidade de a literatura transformar a sociedade. Tal certeza fica evidente já na primeira das duas epígrafes, de Lichtenberg: “Meu corpo é a parte do mundo que meus pensamentos podem mudar. Até as enfermidades imaginárias podem se tornar verdadeiras. No resto do mundo, minhas hipóteses não podem turvar a ordem das coisas”.
Se a assertiva de Lichtenberg dá o tom orgânico do livro, a segunda epígrafe, de Kafka, adianta um de seus modelos: o diário. Não que “Sonho interrompido por guilhotina” tenha caráter confessional. Sua estrutura, misturando caderno de notas, citações, reprodução de textos alheios, autofagias e ensaios, sugere uma espécie de jogo de montar auto-referente, cujas ramificações se interligam, numa alegoria possível do movimento da própria literatura. Para ficarmos novamente com Valéry: a linguagem dentro da linguagem.
Assim como em “Hotel Hell” e “Curva do rio sujo”, incursões anteriores pela prosa, Terron flerta com o escatológico e com os experimentalistas. No novo trabalho, contudo, a alusão a seus “pais” literários é mais direta. Valêncio Xavier, José Agrippino de Paula, Glauco Mattoso e Raduan Nassar aparecem como personagens, numa homenagem que não se encerra no mero tributo, mas propõe um diálogo, franco e criador, entre escrituras cujo afeto é mútuo.
Essa interação acontece também com autores que, menos conhecidos por aqui, integram o particular cânone de Terron. É o caso dos americanos Washington Irving e Wallace Stevens, que no livro dividem espaço com Narcís Monturiol i Estarriol, inventor do submarino, e Jor-El, pai biológico de Clark Kent, numa diluição de fronteiras entre realidade e ficção característica de sua obra. Em “Curva do rio sujo”, ele se valera desse expediente ao imaginar Peter Pan, Huckleberry Finn e Nemecek acompanhando um menino em suas aventuras.
Quando manejado com precisão, esse emaranhado de referências acrescenta novas camadas à leitura. Algumas vezes, no entanto, atravanca a fluência do texto, que perde a força, justamente uma das maiores virtudes da prosa do autor. Os (poucos) pontos baixos do livro ocorrem quando, a despeito desse vigor que a narrativa em si contém, ele carrega demais no grotesco e resvala no gratuito. O insólito não precisa de negrito. E a literatura de Terron já insinua o que se torna explícito em contos como “Algo embaraçoso deixado para trás”: “Para a montanha de poetas parnasianos que existem em pleno terceiro milênio insistir numa linguagem floreada e asséptica, deve haver sua contraparte, a descarga de sintaxe em que palavras proibidas bóiem”.
A estranha beleza de “Sonho interrompido por guilhotina” está nas margens, nos soluços de lirismo que rompem o cerco aparentemente insuperável do bizarro — não raro brotando de dentro dele, como no tocante “A flor de nenhum buquê”. O protagonista, migrante do interior, respira a fuligem na metrópole enquanto espera a amada. Sonha recebê-la com flores, mas quando a moça enfim chega não consegue comprá-las. A vida concreta, então, fura a bexiga do sonho: os dois ouvem um estampido de bala e flagram um corpo boiando na água. Desfigurada pelo tiro, a face do cadáver sugere uma rosa cálida: “As pétalas sanguinolentas cheirando a pólvora pertenciam à flor que em nossa entrega a cidade e eu oferecíamos à Esperança”.
Outro destaque é “Pequenos danos”, no qual autor se assume como o protagonista que recebe cartas de um detento, solicitando a remessa de livros para a biblioteca da penitenciária. O enredo é erigido em camadas narrativas que comportam outras dentro de si e desenham o ciclo moto-contínuo e infinito que, no fundo, toda história encena. Mas é em “Monumento ao escritor desconhecido” que Terron faz convergirem todos os fios que costuram o livro. O conto enfoca a viagem de um escritor para cidade interiorana. Durante o périplo, ele carrega consigo uma cordinha de descarga, na qual acredita levar presa a realidade, e conhece Nassar Cassis Nassar, poeta louco que inventa nomes para coisas e lugares. “Alterava o nome para depois corrigir as formas e assim escapar à continuidade de todos os dias, do verão sucedendo o outono, (…) da calmaria precedendo a tempestade”, observa o narrador. Nassar acabará enforcado com a cordinha do escritor. Estrangulado, em sua utopia, pelo mundo que sua ficção não foi capaz de transformar.
*Resenha publicada no suplemento Prosa & Verso (O Globo)
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