Parati para mim

Balé melancôlico sobre as pedras disformes de Parati

O sol negro da melancolia arde levemente, como brasa recém-dormida, sobre os protagonistas dos contos que compõem o livro “Parati para mim”. Idealizada pela Editora Planeta para ser lançado durante a I Festa Literária da cidade, a obra reúne textos de Chico Mattoso, João Paulo Cuenca e Santiago Nazarian, três jovens escritores que lá permaneceram por duas semanas com o compromisso de criar histórias passadas em suas ruas centenárias.
A identidade entre os contos não foi pré-concebida. Pelo contrário, os autores combinaram não revelar sobre o que escreveriam. É, portanto, surpreendente, porém sintomática, a correlação de estados entre os personagens Emílio, que dá nome ao texto de Mattoso; Lívia, protagonista de “A mulher barbada”, de Nazarian; e o flâneur que narra suas andanças em “A carta de pedra”, de Cuenca. São indivíduos que de uma forma ou de outra chegaram a Parati, onde ruminam os fantasmas de seu passado. A melancolia não aparece simplesmente como tédio ou tristeza perene, mas “experiência existencial”, como na condição legada por Roberto Burton em seu seminal estudo, de 1621, sobre o tema.
Ressalvada uma pequena questão de estilo – a incômoda presença de um cacófato-, talvez em razão do prazo exíguo para a concepção do texto, o conto que abre o livro, “Emílio”, já dá a dimensão do que vem a seguir. A narrativa inicia-se no desolado quadro do protagonista bebendo cerveja num bar, ainda envolto nas lembranças de Marcinha, mulher que o abandonara. No conto de Mattoso, não há referência nominal à cidade, como ocorre nos demais. No entanto, as alusões aos índios, às ruas de pedra por onde Emílio vaga “esbarrando nos lugares como uma bolinha de fliperama”, desenham Parati no imaginário do leitor que lá já esteve. Apático, o protagonista sente a recordação de Marcinha como uma “bola que queima no estômago”.
O encontro com uma pequena cadela, por quem sente uma súbita afeição, faz porém a angústia sumir por alguns momentos. Curiosa a menção se lembramos que a imagem do cão, no Renascimento, funciona como representação pictórica da memória, sempre fiel ao homem em sua caminhada. É em busca desse prazer fugidio, capaz de lhe devolver por um instante que seja a capacidade de pôr verniz no mundo, vê-lo brilhar novamente, que Emílio seguirá, na esperança – que por vezes se sugere vã – de esquecer o passado, mesmo em uma cidade cuja topografia o evoca a cada instante.
A “bola que queima” no estômago de Emílio assemelha-se ao “peso enorme” que recai sobre o narrador de “A carta de pedra”, ponto alto do livro. O personagem concebido por Cuenca também se vê às voltas com um amor que se foi: Teresa. À deriva, tenta desvelar em Parati segredos que se escondem nas cartas que sua ex-mulher recebera após a morte do pai dela, procurando nessa investigação algum sentido para sua vida, da qual se sente “coadjuvante”, como confessa repetidamente.
Quer “entender e isolar o exato momento em que tudo virou, compreender a exata cadeia de eventos que fez tudo desmoronar, a realidade começar a mentir, a ternura de um sorriso transformar-se em perversidade, cumplicidade em antagonismo – como se a semente de um estivesse crescendo dentro de outro desde o primeiro dia”. A ausência de Teresa criara um espaço maior do que ela mesma pudera um dia ocupar e ele se sente “fora de foco”, um pobre-diabo morrendo aos poucos, cujo sofrimento “lhe veste bem, justo, elegante”.
Perturba-o, além do espectro de Teresa, sua indiferença – ela apagara de si o passado, “posto fora como uma roupa rota”, e ele, como no célebre poema de Ferreira Gullar, parece suplicar-lhe que o leve ao menos “no esquecimento”. Por alternar a voz do narrador com o conteúdo das cartas, o conto em alguns momentos corre o risco de embaralhar a compreensão do leitor. No caso, entretanto, tal desorientação é bem-vinda, pois sublinha a situação do protagonista, que escuta Teresa em presença quase física soprar-lhe frases no ouvido, a alertá-lo: “para perder o sentido basta um passo”.
Tal passo Lívia (ou Lusiânia), protagonista de “A mulher barbada”, acaba de dar. O conto de Nazarian aparece sob a forma de extensa carta, escrita pela personagem para purgar sua passividade na relação com Paulo Roberto, o marido que sequer lhe chamava pelo nome. “Não faço sentido”, diz ela, que vivera como um “vaso vazio” onde somente ele plantava. Doente, enfrenta dias, tardes e noites isolada numa pousada, para onde foi, acompanhada dele, atrás de um último “sopro de vida”. No fundo do quarto do hotel, seus pensamentos rangem, como nunca antes. “Você tinha sua vida e nós tínhamos a nossa. E a minha, onde é que foi parar?”, pergunta, “preenchendo os parágrafos com seu tédio”.
A ida dos três protagonistas a Parati tem a crise como elemento comum. Nas pedras disformes e antiqüíssimas da cidade, eles bailam pateticamente. A água que brota do solo insinua uma cidade mágica, vaidosa, cujas ruas espelham simultaneamente realidade e ilusão. O casario, com mais de 300 anos, sugere uma permanência que os oprime, já que o passado é para todos um fardo. Do conflito entre puro relato e imaginação; do embate com o que ficou e os dissolve, frutifica uma literatura vigorosa que sob o signo de Saturno procura, como o personagem Emílio, “linhas retas” em meio ao caos.

 
* Resenha publicada no suplemento Prosa & Verso (O Globo)


O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *