Erudição, mistério e humor
A leitura de “Os espiões” mostra que, ao escrever o primeiro romance sem encomenda, Luis Fernando Verissimo manteve-se fiel a seu estilo e suas obsessões. A exemplo do que acontecia em incursões anteriores pela narrativa longa — como “O jardim do Diabo” e “Borges e os orangotangos eternos” — , na nova obra o autor parte de uma paródia sobre o gênero policial para tratar, com refinado humor, de questões afeitas ao universo da literatura.
Se em “O jardim do Diabo” o protagonista é um escritor de livros baratos, e em “Borges e os orangotangos eternos” o personagem principal trabalha como tradutor, a trama de “Os espiões” gira em torno de um terceiro vértice da geometria literária. Quem narra a história é um editor misantropo, fã de John le Carré e completamente frustrado com sua profissão.
“Nas segundas-feiras estou sempre de ressaca, e os originais que chegam vão direto das minhas mãos trêmulas para o lixo. E nas segundas-feiras minhas cartas de rejeição são ferozes. Recomendo ao autor que não apenas nunca mais nos mande originais como nunca mais escreva uma linha, uma palavra, um recibo”, confessa ele, que faz de sua rotina na editora uma longa espera pelo fim de semana, quando poderá encontrar os colegas de copo no bar do Espanhol e purgar, com um porre, o próprio desalento. “No bar, nossas conversas começavam com a vírgula e depois se expandiam, abrangendo a condição humana e o Universo”, relata.
Esse ramerrão será interrompido quando recebe um envelope que traz as primeiras páginas de um livro que estaria sendo escrito por uma certa Ariadne. Ela promete contar, em sucessivas correspondências, a aventura envolvendo crime e paixão que viveu numa pequena cidade do interior, e sugere um futuro suicídio. A alusão à mitologia grega se evidencia já no nome da personagem, mas Veríssimo inverte o jogo: se, no mito, Ariadne ajuda Teseu a sair do labirinto, em “Os espiões” ela serve de elemento de atração, arrasta todos para dentro dele.
“A literatura de Ariadne era um apelo a Dionísio, qualquer Dionísio, inclusive um de meia-idade com cirrose incipiente, para salvá-lo do seu passado ou mudar o seu destino”, observa o narrador. Inebriado pelas palavras da mulher, ele firmará com seus parceiros de bar uma espécie de “Exército de Brancaleone” para levar à frente o que chamam de Operação Teseu. O objetivo: resgatar a bela e triste Ariadne das mãos de seus malfeitores.
Os soldados desse exército são tipos excêntricos como o professor Fortuna, sujeito que passa os dias a exaltar a própria erudição e diz estar escrevendo “uma resposta à ‘Crítica da razão pura’”, com o título provisório de “Anti Kant”. Para Fortuna, a literatura terminou com Sófocles — “Tudo que veio depois é post scriptum” — e o único mérito de Proust “foi ter dado uma reputação literária à asma”. Entre os parceiros de empreitada, estão também Fulvio Edmar, autor de “Astrologia e amor”, o único best-seller da editora, e o revisor Joel Dubin, um oficialista da língua que se notabiliza pelo rigor na colocação das vírgulas e costuma se apresentar como “poeta menor”.
À medida que o enredo se desenrola, Frondosa, a cidade de Ariadne, transforma-se no centro dos acontecimentos e surgem novos personagens, tão hilários quanto os do princípio do livro. É o caso de Diamantino Reis, chamado de “Uruguaio” mesmo sem ter nascido no país, porque ficou rico ao apostar contra a Seleção Brasileira na final da Copa do Mundo de 1950. Diamantino virou um pária no lugar, onde convive com um padre surdo em cuja igreja as confissões são feitas aos berros, e um editor de jornal que, saudoso do stalinismo, faz experiências no intento de obter uma flor de “vermelho perfeito”, à qual pretende chamar de Rosa Luxemburgo.
Com ironia, Verissimo vale-se desses tipos para fazer argutas observações sobre as imposturas intelectuais, o provincianismo e a ambição que cada vez mais pessoas têm de se tornarem escritoras. Quase sempre os comentários são sutis, mas em algumas passagens o narrador se permite uma referência mais explícita, como no momento em que repete uma das teses do professor Fortuna. “O professor diz que em vez de endeusar escritores deveríamos louvar os milhões que resistem e não escrevem, e cuja grande contribuição à literatura universal são as folhas que deixam em branco”.
As peripécias da trupe que tenta resgatar Ariadne terminarão de forma surpreendente, num desfecho que, aliás, reforça o ponto essencial desse que constitui um metarromance. Toda a Operação Teseu se assentava sobre a esperança, quase certeza, de que seria possível manipular o destino de outros indivíduos, como o próprio narrador em dado instante reitera: “Na ficção, você pode se meter na vida dos seus personagens o quanto quiser. Pode até matá-los, se desejar. Sem culpa, sem remorso e nunca por acidente. Ou então salvá-los”. Entretanto, aqueles que se queriam agentes ativos de um novo enredo soçobram diante do irremediável dos fatos; quem ambicionava “escrever” a história acaba “sendo escrito” por ela. Indício, talvez, de que a onipotência do escritor é limitada, frágil. É lâmina que não corta fora dos livros.
* Resenha publicada no suplemento Prosa & Verso (O Globo)
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