Os anões

O insólito com sangue, mas sem afeto

Na contracapa de “Os anões”, nova seleta de contos de Veronica Stigger, o escritor mexicano Mario Bellatin observa que uma das características do livro contemporâneo é ser, “antes de uma leitura, uma experiência”. A Cosac Naify parece concordar. Desde 2005 – quando lançou “Bartebly, o escrivão”, de Herman Melville -, a editora tem procurado oferecer ao leitor, em uma série de obras, algo além da mera reprodução impressa das palavras. Uma espécie de vivência sensorial, que nasce do vínculo radical entre o projeto gráfico e a substância do texto.
Além de “Bartebly”, cuja edição vem com as folhas costuradas, obrigando quem queira ler a novela a refilá-las, tal expediente foi utilizado em “A fera na selva”, de Henry James: à medida que a história avança, as páginas perdem contraste, a mancha gráfica fica menos legível. O livro de Veronica é a mais nova investida da Cosac nessa direção.
Impressa em papel cartonado, com gramatura alta (300 g/m2), num volume compacto de 16 cm x 12 cm, a publicação busca “reproduzir” imageticamente o título da seleta. Que, por sua vez, se refere ao conto de abertura, sobre dois anões que furam a fila em uma confeitaria e se demoram na escolha dos doces, provocando indignação nos demais fregueses. “Não eram deformados, nem tinham aquele aspecto doentio característico de alguns anões (…). Até que faziam um conjunto bonitinho”, descreve o narrador, que se limita a relatar os acontecimentos, mesmo quando ganham contornos de extrema violência. Os anões são linchados, viram uma “pasta de carne e sangue”, e logo em seguida a rotina da loja é retomada.
Essa “isenção” de quem narra, aliás, marca os 22 contos do livro, divididos em três eixos: “Pré-histórias”, “Histórias” e “Histórias da arte”. Se há variedade formal – escritos mais longos, textos com feitio de roteiro, pensatas, micronarrativas –, o comportamento das personagens é recorrente. Suas reações são mecânicas, pouco reflexivas, desprovidas de afeto.
Em “Teleférico”, atores coadjuvantes são convocados por uma emissora de TV para participar da comemoração de fim de ano. Diante de uma multidão, dividem-se em equipes e ocupam dois bondes, que acabarão se chocando no ar. A plateia, extasiada, então aplaude a queda dos atores e o “sucesso do desfecho”, retransmitido à noite. Em “200 m2”, a escritora não compreendida se suicida no meio da própria festa, como prévia para a leitura de um conto feito especialmente para a situação. Quando, em “Curta-metragem”, o homem ameaça se jogar da sacada do apartamento, sua mulher se restringe a comentar: “Você podia, pelo menos, trocar essa calça”. Nos três casos, não há piedade, não há dor. Tudo é, apenas, espetáculo.
E mercadoria. Em “Tatuagem”, José é processado pelos parentes do poeta cujos versos desenhou na barriga, tornando-os “públicos” numa ida à praia. “A família ganhou a causa e a tatuagem, que hoje está emoldurada na grande sala de estar”, conta o narrador. A crítica mordaz à mercantilização aparece também nos contos em formato de classificados. Tendo como títulos os nomes de artistas como João Cabral de Melo Neto e Maria Martins, os textos anunciam a venda de apartamentos no Flamengo, com o preço e a descrição do imóvel. E a alusão tem um pé na realidade: tanto o escritor como a escultora moraram, de fato, no bairro.
A piscadela para as artes plásticas – área na qual Veronica é pós-doutora e que já explorara em livros de ficção anteriores, como “O trágico e outras comédias”, de 2004, e “Gran cabaret demencial”, de 2007 – inclui diálogos com as obras dos pintores Wega Nery e Flavio de Carvalho. Se a ponte pode se revelar indecifrável ao não iniciado, é um risco que a autora assume. Até porque o deslocamento quanto ao espaço original de cada saber, de cada gênero, parece constituir uma de suas obsessões.
O interessante é que esse efeito de “estranhamento” incide sobre o leitor, não sobre as personagens. Para elas, mesmo o insólito soa natural. Exemplo disso o texto “Curta-metragem II”. Espatifado na calçada e envolto numa poça de sangue, o casal conversa sobre fuscas como se estivesse rotineiramente na sala de casa, ou num bar.
Verônica apropria-se, também, da filosofia, evocada em “Caverna” com uma alusão ao mito platônico. O conto se resume à descrição dos movimentos quase mecânicos de pessoas que se revezam entre as poltronas de um cinema, à espera da sessão. Assim como em “Teleférico”, os coadjuvantes (espectadores) se tornam, ainda que por um momento, protagonistas. E a tela permanece sem qualquer imagem. Há somente um “solitário facho de luz” revelando o “branco sujo da parede”.
A dicotomia entre o “real” e suas sombras é retomada no texto que fecha “Os anões” e no qual a própria Veronica se transforma em personagem. “Imagem verdadeira” é a cópia fac-símile da declaração de um cartório referente ao seu nascimento. No entanto, o texto do certificado qualifica-a como “do sexo masculino”. O que vale: o documento oficial ou a evidência empírica? As informações se embaralham, as certezas vacilam. Como se autora sugerisse que, mesmo em um livro de conexão tão harmônica entre forma e conteúdo, a aparência pode aplicar uma rasteira. E a literatura é, sempre, terreno movediço.

 
* Resenha publicada no suplemento Prosa $ Verso (O Globo)


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