Sob a sombra da ambigüidade
Foi Italo Calvino quem afirmou que, de uma cidade, não aproveitamos suas sete ou setecentas maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas. O deslocamento pelo espaço urbano permitiria a tradução de seus códigos mais ocultos, emprestando algum sentido – seja existencial, seja estético – à busca de quem se lançou na estrada. Inscrita no seminal “As cidades invisíveis”, a crença do autor italiano parece representar também a força-motriz do trabalho de Bernardo Carvalho, que, com “O sol se põe em São Paulo”, confirma uma trajetória singular dentro da literatura brasileira.
Assim como em “Nove noites” (2002) e “Mongólia” (2003), é a partir de uma viagem – no caso, ao Japão – que as teias do novo livro ganham seus sinuosos traçados. Noutro paralelo com a produção anterior, o narrador do romance move-se pela ânsia em decifrar um enigma que, estabelecido logo nas primeiras páginas, equilibra-se na frágil fronteira entre a ficção e a realidade. O novo romance tem um único e pequeno senão: a falta de cuidado na carpintaria do texto, o que surpreende em razão da notória qualidade da prosa do autor.
O enredo se estabelece num bar localizado no bairro do Paraíso, onde o protagonista, um publicitário que nunca abandonou de totalmente o desejo de ser escritor, conhece a octogenária Setsuko. Dona do estabelecimento, ela lhe propõe que registre em papel uma história ambientada no Japão da Segunda Guerra, que envolve uma moça de família respeitada, o filho de um de industrial e um ator de kyogen, o teatro cômico local. A abrupta interrupção do relato levará o narrador ao país asiático, onde pretende desvelar a intrincada trama, que abarca ainda um soldado, o primo do imperador e um famoso escritor, todos eles imiscuídos na rígida hierarquia social japonesa.
A partida do publicitário é dolorosa, porque desde o início do livro fica clara a instabilidade de suas relações com o Oriente. Neto de japoneses imigrantes, ele critica a opção da irmã, que fez o trajeto de volta no afã de conseguir emprego e cujo retorno é encarado pelo narrador como a perpetuação “do fracasso”. “Durante muito tempo, eu tentei fugir como o diabo da cruz de tudo o que fosse japonês (…). Eu podia nunca ter pisado no Japão, mas por muito tempo tentei acreditar que era onde ficava o inferno. (…) O inferno era aqui mesmo”, assinala ele, sugerindo que a opção por São Paulo não lhe é menos sofrida.
O mal-estar em “viver no presente e ser o que é” escorre por suas frases e pelas ruas paulistanas, “que tentam convencer a quem passa por elas que se está em outro lugar, num esforço inútil de aliviar a tensão”. E a viagem do narrador rumo ao Japão, à caça das peças que faltam e aos poucos irão se encaixar na história, será permeada por referências à literatura nipônica, sobretudo à obra de Junichiro Tanizaki. À medida que a trama avança, o diálogo estabelecido com o autor japonês também se acentua, passando do sutil ao flagrante. “O sol se põe em São Paulo” redesenha, por exemplo, o triângulo amoroso com acento homossexual que é traço recorrente nos livros de Tanizaki. As alusões chegam a transcender o campo ficcional: num dos capítulos, há referência direta a fato vivido pelo próprio Carvalho quando esteve em Tóquio três anos atrás. O episódio fora registrado em sua coluna na Folha de S. Paulo e republicado na seleta de resenhas e crônicas “O mundo fora dos eixos”, antes de saltar para as folhas do novo livro.
No entanto, o elo mais forte entre os dois autores – e que talvez explique o interesse do brasileiro por Tanizaki – é a sombra de ambigüidade que ambos lançam sobre suas histórias. De certa forma, o desalento do narrador de “O sol se põe em São Paulo” com as imposturas que emergem de sua pesquisa reencena a desorientação do militar que perde a identidade e passa a não diferenciar o real do falso em “Os bêbados e os sonâmbulos” (1996). Ou a angústia do personagem que, em “Nove noites”, é avisado de que entrará “numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos” de antes.
Em dado momento, Setsuko fala ao publicitário que “a literatura é (ou foi) uma forma dissimulada de profetizar no mundo da razão, um mundo esvaziado de mitos, (…) é um substituto moderno das profecias”. Em síntese, um modo de ler a vida sem a rigidez da ‘verdade’, embora com verossimilhança; sem literalidade, mas em seu “supra-senso”, como sublinhou Guimarães Rosa. Esse universo próprio, que repele e fascina, que é dor e remédio, assemelha-se àquele apresentado ao viajante, que durante seu curso passa “a ver coisas que os outros não vêem”. “Vê mais – ou menos – mas nunca o mesmo que os outros”, como anota o narrador, numa indicação talvez contingente de que, tanto para quem escreve, quanto para quem lê, aventurar-se pelas páginas de um livro também é uma espécie de viagem.
* Resenha publicada no suplemento Prosa & Verso (O Globo)
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