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O que quer de mim, amor?

O que quer de mim, amor?

Relações familiares unidas por solidão e melancolia

O afeto – por um filho, por um professor, por um time de futebol – é o fio que une as 16 histórias reunidas em “O que quer de mim, amor?”, do escritor e jornalista espanhol Manuel Rivas. Colaborador do jornal El Pais, autor de seletas de poemas e ensaios literários, Rivas recebeu em 1996 o Prêmio Nacional de Narrativa pelo livro que a editora Tinta Negra lança agora no Brasil.
Em “O que quer de mim, amor?”, o escritor examina as cicatrizes de personagens para quem a solidão, mais que um estado transitório, é condição de vida. Não há exatamente tristeza, mas melancolia, que Rivas destila em relatos como o que abre e dá nome ao livro. Inspirado em versos do trovador medieval Fernando Esquio – “Já que ela não quer me ver nem falar, / O que quer de mim, Amor?”-, o conto expõe as consequências do assalto a banco que acabará por marcar, de modo inexorável, a história de um casal. Com destreza, entre idas e vindas ao passado e ao presente, o autor mantém a tensão da narrativa até o revelador e surpreendente fim.
O principal mote do livro são as relações familiares, que podem se traduzir na apreensão de um casal com o sumiço do filho (“Sozinho por aí”) ou no encantamento de um menino pelo tio que gostava de beber e contar vantagens (“O imenso cemitério de Havana”). Em “O técnico & Iron Maiden”, o vínculo entre um garoto e seu pai é esmiuçado a partir de uma partida de futebol a que os dois assistem pela televisão. A alusão à banda de rock desvela o acento pop presente em outros relatos, como o belo “A luz de Yoko”, que cita uma série de TV, e “Desenhos animados”, dedicado pelo autor a ninguém menos do que as Tartarugas Ninja.
Essas menções a personagens mundializados convivem com registros de cor local. Rivas, que nasceu em La Coruña e escreve originalmente em galego, faz ao longo do livro uma série de referências à cultura e a episódios históricos da região – a ponto de a editora ter incluído esclarecedoras notas de rodapé em algumas páginas.
Há, também, diálogos com a pintura – caso do conto “A leiteira de Vermeer” – e com a própria literatura. Em “A chegada da sabedoria com o tempo”, o trecho de um poema de W.B. Yeats serve como senha para que o protagonista perca a invisibilidade social. Já em “A menina da calça corsário”, uma mulher com sua bicicleta ameaça frustrar um atentado quando decide estacionar sua bicicleta justamente na ponte que explodiria. Rivas embaralha a percepção do leitor, levantando dúvidas sobre o sentido do que é narrado: existe mesmo um plano terrorista ou tudo vem apenas da imaginação do escritor-personagem? Nessa turva dissidência, relativiza o poder da literatura sobre os fatos que insistem em acontecer, à sua revelia.
“A menina de calça corsário”, aliás, é um dos pontos altos de um livro orgânico, mas irregular. Em alguns momentos, o lirismo da narrativa de Rivas descamba para o açucarado, e a insistência na alegoria envolvendo mariposas termina por banalizá-la. Isso embora, curiosamente, o melhor texto da seleta se valha dessa metáfora. Trata-se de “A língua das mariposas”.
Adaptado para o cinema pelo diretor José Luis Cuerda em 1999, o conto é conduzido por Mocho, que tem somente sete anos. Ele teme ir à escola porque se fixou na ideia de que os professores batem nas crianças. Ao conhecer Don Gregório, porém, o medo dá lugar à admiração. “Tudo que ele tocava era uma história fascinante. A história podia começar com uma folha de papel, depois passar pelo Amazonas e a sístole e diástole do coração. Tudo se ligava, tudo fazia sentido”, observa o garoto, cuja autoestima é estimulada pelas lições do mestre.
A Guerra Civil Espanhola assinala uma virada na trama, que atingirá todos os personagens, sobretudo Moncho e Don Gregório. Sem compreender o que de fato ocorre em sua cidade, e no país, o menino tenta construir significados a partir da fala cifrada dos vizinhos e dos comentários entrecortados dos pais.
Em entrevista dada em 2003 a um blog espanhol, Rivas confessou que, quando criança, costumava se esconder entre os degraus de uma escada, na casa do avô, para ouvir as histórias contadas pela família, formada em boa parte por imigrantes. “Naquela conversa em torno do fogo, estavam todos os gêneros literários modernos”, comentou o escritor, oferecendo uma chave para a própria obra. Num mecanismo semelhante ao de Moncho, que com fragmentos de discursos e afeições recém-descobertas monta seu ainda frágil olhar sobre as coisas, Rivas capta, nas frestas da literatura, subsídios para reescrever o mundo.

 
* Resenha publicada no suplemento Prosa & Verso (O Globo)


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