Mais ao sul

Unidos pela cartografia afetiva

Protagonistas dos contos de Paloma Vidal circulam por diversas cidades tateando sentidos
Marcelo Moutinho*

 
Cada cidade contém seu passado, gravado e marcado por arranhões, “nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras”. Ao afirmá-lo, Italo Calvino referia-se ao espaço urbano como um discurso, que emerge da topografia, mas também da memória individual, e encharca a paisagem de valor simbólico. Ao escrever seu segundo livro, a jovem Paloma Vidal parece ter se inspirado nessa espécie de cartografia afetiva. Os protagonistas das histórias reunidas em “Mais ao sul” circulam por cidades como Buenos Aires, Londres, El Paso e Rio de Janeiro, tateando sentidos nos cenários que os cercam e “inventando imagens para lembranças inexistentes”.
Um dos méritos de Paloma, como bem destaca João Gilberto Noll na orelha, é a unidade entre os diferentes contos, que confere um caráter orgânico ao livro. Há um “núcleo de evocação renitente, fosca, inspirando os passos lentos do bordado narrativo”, salienta Noll, numa alusão ao conceito que, como um feixe, atravessa as 10 histórias: a sensação de expatriamento.
Esse sentimento é experimentado já no texto que abre o volume, não à toa intitulado “Viagens”. No conto, a narradora relata o susto de sua volta à cidade em que nasceu, num paralelo possível com a trajetória da própria autora: Paloma tem nacionalidade argentina e veio para o Brasil com apenas dois anos de idade.
“Nada daquilo tinha realmente a ver comigo, mas ainda hoje sobrevive em mim como uma zona escura da memória, um ponto de fuga para onde correm medos que não sei ao certo de onde vêm, nem se algum dia encontrarão sossego”, anota, em primeira pessoa, a personagem. A impossibilidade de apreender a infância perdida é comparada, numa metáfora feliz, aos entraves para se decodificar com perfeição uma língua estrangeira: por mais que se tente, há “vazios de sentido, expressões que se perdem, fonemas que se confundem”.
Mote semelhante se dá em “O retorno”, no qual a protagonista segue para Buenos Aires no afã de enterrar o pai e acaba recordando um antigo trauma. Paloma é precisa ao potencializar, no curto tempo de estada, a dor renascida com o regresso, que coloca a personagem “num limiar entre dois mundos”, na tênue linha que une (e divide) o hoje ao outrora. Na parte final do trajeto, cumprida de táxi, a mulher vê as esquinas da cidade fundindo-se a imagens em flashback: “um quintal, um balanço, mãos grandes e suaves empurrando suas costas, um sorriso quase a seu alcance”.
É pena que em muitos momentos essas vias de introspecção sejam abafadas por trechos eminentemente dissertativos. Em “Viagens”, por exemplo, as informações históricas e estatísticas sobre os fluxos migratórios entre os países europeus e a Argentina interrompem de forma brusca o mergulho subjetivo da personagem. Em “Jesus de El Paso”, a narrativa ganha tons panfletários quando a protagonista cogita dizer ao soldado que invadiu seu ônibus “que o que está acontecendo no Iraque é de responsabilidade de seu comandante-em-chefe e de sua cruzada contra o terror”.
Outro problema – traço que, aliás, já se apresentava em “A duas mãos” (7Letras, 2003), o livro anterior – é a recorrência no emprego de expressões gastas. A utilização de lugares-comuns como “sentia-se novamente uma criança”, ou “uma onda de felicidade veio em sua direção” denota certa falta de rigor e destoa na prosa em geral sofisticada da autora. Até porque, quando liberta da ‘pesquisa’ e mais atenta à composição, Paloma voa bem alto.
Prova disso é o conto “Tempo de partir”, baseado numa peça de Juliana Pamplona. A trama se inicia quando a protagonista, uma senhora uruguaia que vive no Brasil, observa a máquina de lavar girando e “fazendo rodar as roupas numa mistura de cores que a hipnotiza”. A partir dessa cena prosaica, Paloma constrói um poderoso retrato de família em cujo epicentro está a personagem. “Ellos ni se falam, pero sus ropas se entrelazam em la máquina de lavar”, ela pensa em ‘portunhol’, enquanto repassa a tentativa frustrada de ensinar o espanhol aos netos, os conflitos com a nora que a despreza, conferindo-lhe a responsabilidade pelos desajustes familiares. Por fim, lembra da particular afeição por Alice, a única neta mulher.
Com a máquina de lavar já desligada, as roupas se aquietam. A senhora, então, retira o macacão vermelho da menina e o pendura no varal, “como uma bandeira solitária”. A comovente alegoria do desfecho vislumbra uma conexão possível naquele pequeno núcleo onde se tornara praticamente uma ‘estrangeira’. Uma vitória, ainda que parcial e tímida.

 
* Resenha publicada no suplemento Prosa & Verso (O Globo)


O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *