Shepard busca singularidades na solidão
Em 1984, o cineasta Wim Wenders encantou a platéia de Cannes ao levar às telas a história do misterioso Travis, andarilho que percorria uma América tensionada entre deserto e civilização. No filme “Paris, Texas”, que acabaria conquistando a Palma de Ouro no Festival, Wenders propunha questões como a recusa às “falsas imagens” que somos capazes de forjar sobre nós mesmos e os outros, e ensejava uma crítica vigorosa contra o crescente artificialismo da vida contemporânea. Assinava o premiado roteiro da produção, baseado num conto de sua própria lavra, o dramaturgo, ator e escritor Sam Shepard. Vinte anos depois, a lembrança de “Paris, Texas” é inevitável durante a leitura de “Grande sonho do céu”, coletânea de narrativas breves de Shepard, lançada pela editora Arx.
Os 18 contos do livro expõem essa busca por “essências”, o contraste entre uma natureza “pura” e a cultura “contaminada” do homem da grande cidade, temática que o autor busca sustentar na própria tessitura da narrativa, árida e substantiva. Pode decepcionar-se o leitor que procurar nos contos de “Grande sonho do céu” o brutal impacto dramático que, segundo Cortázar, seria a característica do gênero. Shepard trabalha com frases curtas, praticamente não recorre a metáforas e aposta na descrição física do ambiente e na força dos diálogos – traço evidente de um criador ligado à dramaturgia – para apresentar personagens à beira da letargia em bares de estrada, fazendas, campings, ou simplesmente transitando pelas estradas do meio-oeste dos Estados Unidos.
Os fiapos de tramas, que lembram esquetes, podem envolver idiossincrasias familiares (no inusitado “O olho que pisca”, a mulher leva as cinzas da mãe em seu carro e acaba atropelando um gavião); relações amorosas desfeitas (como as desilusões do homem que abandonou a família em “Coalinga – metade do caminho”); ou a linguagem indizível que lateja por detrás das paixões adolescentes (explorada, em “A porta para as mulheres”, através da conversa entre um avô e seu neto). Entretanto, o que de fato confere organicidade ao livro é o olhar sensível que Shepard destina à suposta singularidade desse homem ligado às “coisas da terra”, numa proposta que contrapõe a busca pelo “essencial” ao caótico e inflacionado universo da cosmópolis. Já na epígrafe, Shepard dá o norte do que o leitor vai encontrar: “As pessoas costumavam dizer que os bem-aventurados ‘veriam o céu’; meu desejo seria ver a terra para sempre”. Quem assina é Peter Handke, não por acaso outro constante colaborador de Wenders.
Sustentando os personagens, há uma espécie de “força interna” que parece germinar da recusa às “modernidades”, mas em contrapartida deixa patente a solidão que os oprime – e sua evidente falta de rumo. “O homem dos remédios”, conto que abre a publicação, é um bom exemplo. “Naquele momento eu sabia de onde tinha vindo e para quão longe eu iria partir”, afirma o jovem protagonista, após experimentar pequeno rito de passagem e sentir-se “dono de si” pela primeira vez. Em “Vivendo o cartaz”, a mensagem de um cartaz alocado na parede de um bar – “A vida é o que está acontecendo com você enquanto você planeja outra coisa” – serve de mote às digressões do narrador. “Não faço idéia em que cidade estou. Não importa. Não faço idéia de para que cidade vou. Não tenho planos”, comenta ele, movido por sentimento semelhante ao homem que, em “Zunido”, percorre diferentes cidades e comunica-se com sua interlocutora somente através de recados na secretária eletrônica.
Dois solitários estrelam também o conto que empresta o nome ao livro e decerto representa seu ponto alto. Em “Grande sonho do céu”, Shepard permite-se pequeninos arroubos de lirismo ao narrar a história de dois velhos que dividem seu isolamento e um bangalô, e repentinamente vêem-se apaixonados por uma garçonete. Longe das mulheres e dos filhos, com a “sorte ter uma amizade duradoura”, eles jogam suas esperanças na valorização de minúsculos afetos, “neste acordo firmado de que os dias e as noites seriam compartilhadas sem complicações, sem muita conversa e um profundo sentimento de satisfação aos menores detalhes, como o jeito de Faye lamber o toquinho de lápis e dar um pequeno suspiro”.
É, contudo, o protagonista de “Estrangeiros” que emite a frase-síntese do livro. O conto, com apenas duas páginas, centra-se nas considerações do homem, que após muito tempo viajando a negócios em companhia da esposa opta por recolher-se em casa. Ele relembra o momento de tal decisão: ao atravessar Santa Fé, sentiu “que não pertencia a lugar nenhum” e não gostou “dessa sensação”. “Eu e minha mulher ficamos muito satisfeitos de estar de volta ao café depois disso. A verdade é que eu prefiro ficar em casa. Não vale a pena a gente se aventurar por aí. Não tem mais pechincha nenhuma. Alguém já botou preço nas coisas, parece”, conclui ele, se não exatamente feliz, resignado no refúgio do lar, talvez única referência que lhe resta, num sossego tão perturbador que transpira apatia.
* Resenha publicada no suplemento Prosa & Verso (O Globo)
Giselle Bossi
7 dezembro
Olá Marcelo, como vai, tudo bem?
Você parece ser uma pessoa muito legal. Senti vontade de conhecer você e conversar muito muito.
Preciosa sua resenha. Saiba que clareou tudo do lado de cá.
Farei uma monografia , analise do Paris Texas e do livro de Sam Shepard.
Você cita Cortázar, qual livro você se refere. Acredito que será bom para eu citar na monografia.
Um abraço
Giselle Bossi