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Desde que o samba é samba

Desde que o samba é samba

Samba de compasso artificial

Na produção um tanto ensimesmada da literatura brasileira contemporânea, é alentador quando surgem livros de ficção que não trazem escritores como personagens, tampouco se limitam a instituir um “diálogo” com alguma obra canônica. Pausa para respirar em meio à profusão de intertextualidades, jogos internos, citações.
Mais raro ainda é quando o romance, ou a seleta de contos, aborda aqueles temas que, apesar de profundamente entranhados no imaginário brasileiro, costumam ser ignorados pela ficção. “Desde que o samba é samba”, o novo trabalho de Paulo Lins, configura, portanto, uma exceção no atual quadro. Mas o livro decepciona.
A expectativa pelo segundo romance de Lins era justificada: a estreia na prosa, em 1997, deu-se com o furacão “Cidade de Deus”, que pulou das listas de mais vendidos para as telas de cinema sob a batuta de Fernando Meirelles, ganhando quatro indicações ao Oscar e levando milhares de pessoas às salas de projeção. Publicado 15 anos depois, “Desde que o samba é samba” muda de época e de cenário. O enredo desenrola-se no bairro carioca do Estácio entre 1928 e 1931, momento efervescente que conjugou a formatação do samba urbano, a criação da primeira escola de samba e o aparecimento dos terreiros de umbanda.
Para isso, Lins retroage até a chamada Pequena África. Nessa área da Cidade Nova, onde muitos escravos foram morar após a Abolição, músicos como Donga e João da Baiana fizeram florescer as primeiras sementes de um samba ainda com feições de maxixe. O autor demonstra como a turma do Estácio transformou o modo de tocar, carregando no batuque e na cadência, e possibilitou os desfiles. Nascia, então, o “samba de sambar” da feliz expressão de Humberto M. Franceschi.
Lins expõe também o tratamento desconfiado, quando não francamente repressor, que o Estado dispensava às manifestações oriundas da África, fosse música ou religião. Narra, em detalhes, a fundação da primeira tenda de umbanda do Brasil, em São Gonçalo. E o encontro de escritores modernistas como Mário de Andrade e Manuel Bandeira com os sambistas cariocas.
Malandros, cafetões e prostitutas, todos afeitos à boêmia, habitam esse universo. Amparado em extensa pesquisa, o autor inspira-se em pessoas que de fato existiram para contar a história. Silva e Tia Almeida, por exemplo, trazem evidentes traços de Ismael Silva e Tia Ciata. Em alguns casos, como os dos compositores Brancura (Sílvio Fernandes), Bide e Baiaco, os nomes são mantidos. A fumaça que turva as fronteiras entre realidade e invenção termina por suscitar um erro na bibliografia informada no fim do livro: Tia Almeida toma o lugar de Ciata no título de um célebre estudo de Roberto Moura.
Ao leitor é dado perceber que, mais do que contar a vida de qualquer um desses personagens, Lins quer é reproduzir com liberdades ficcionais o cotidiano daquele tempo e lugar. Remexer o rico caldo de cultura que engrossou ali.
Entre intenção e produto final, porém, abre-se um fosso. E o problema principal é o artificialismo dos diálogos e da própria narrativa. Não são poucas as passagens em que a trama cede espaço a explicações didáticas e a pesquisa irrompe em meio ao drama de modo ríspido, despotencializando-o. Essa cisão, embora em menor grau, já havia ocorrido em outro romance recente que elegeu o samba como objeto: “Mandingas da mulata velha na Cidade Nova”, de Nei Lopes.
Outra fragilidade localiza-se nos extratos em que a prosa de Lins, marcadamente dura, tenta enveredar pelo lirismo. O resultado quase sempre é palavroso e açucarado, como mostra o trecho a seguir: “As palavras são poucas quando se quer ser sucinto no expressar dos sentimentos. Agulha no palheiro. O óbvio pede sempre muito tempo para se realizar em poesia”. Por fim, a conhecida dificuldade de descrever relações sexuais em texto literário agrava-se pela recorrência das cenas, que, se é natural em uma história transcorrida na zona do meretrício, acaba redundando em diluição.
São essas questões — muito mais do que a polêmica em torno da suposta homossexualidade de Ismael Silva, afirmada no livro — que esfacelam, na realização, a promissora ideia de Lins.

 

 


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