Billy Budd

Melville encena o trágico embate entre Bem e Mal no microcosmo de um navio

Para Diderot, “toda verdadeira poesia é emblemática”. Estendida à obra literária em geral, o que inclui a prosa, a assertiva do escritor e enciclopedista permite imaginar que, para além do mero gozo estético, um grande livro tem a capacidade de penetrar em estruturas mais profundas, que jazem sob o simples desenho do enredo. Esse perfil evidentemente simbólico é marca inequívoca dos livros de Herman Melville, cuja novela Billy Budd, publicada originalmente em 1924, acaba de ser lançada no Brasil pela editora Cosac & Naify, em volume que traz ainda um ensaio de Cesare Pavese e ótimas sugestões de leituras complementares.
Billy Budd chegou às livrarias 33 anos após a morte de Melville, graças ao crítico Raymond Weaver, que encontrou os manuscritos. O livro significou a redenção do autor após um longo período de esquecimento e repete uma obsessão melvilliana: o contraste entre vida selvagem e civilização, encenado a partir das aventuras do protagonista, um marinheiro do navio Belipotente. O tema, bastante caro ao escritor, é fruto de sua experiência pessoal: após passar quatro anos viajando pelos mares do Sul, Melville valeu-se da vivência dessa realidade distante dos paraísos artificiais para reelaborá-la sob a forma de ficção. “Um baleeiro foi minha Yale e minha Harvard”, confessou certa vez.
O navio em que Billy Bud trabalha funciona como microcosmo do universo. Corpo bem desenhado, 21 anos de idade e olhos azuis, o “Belo Marujo” é admirado por seus pares não apenas pela perfeita compleição física, mas também por sua retidão e inocência. Ignora o respeito que os outros lhe distinguem, o que só o torna mais atraente “aos olhos de quem aprendeu a cultivar-se para conquistar um lugar no mundo”. “Todos o amam”, resume Melville.
Assim como Billy, os dois outros personagens centrais da novela – o mestre de armas John Clagart e o capitão Vere – são apresentados por meio de seus perfis físico e psicológico, e esmiuçados a partir não só das impressões do narrador, mas também da imagem que os demais habitantes do navio guardam a respeito deles. Na narrativa iniciática de Melville, o protagonista simboliza o Bem inato, que será vitimado pela forçosa presença do Mal, cuja face no livro é a do mestre-de-armas. Essa leitura aproxima a novela do maior romance melvilliano, Moby Dick – no qual semelhante embate trágico é travado entre o capitão Ahab e a poderosa baleia branca – e se reforça nas seguidas citações que o escritor faz, ao longo das pouco mais de cem páginas de Billy Bud, de passagens da Bíblia.
Billy Budd era “como Adão talvez tenha sido antes que a urbana Serpente se insinuasse em sua companhia”, compara o narrador. O fascínio do mestre-de-armas pela figura do marinheiro virtuoso confunde-se com uma “antipatia espontânea e profunda”, talvez atiçada justamente por sua inocência. Movido por esses paradoxais sentimentos, Clagart urde uma ardilosa trama, cujo desfecho é a condenação de Billy. O “Belo Marujo”, a exemplo de “muitos dos que são em essência de boa índole, possuía algumas das fraquezas intrínsecas às naturezas essencialmente boas”, entre elas a “quase incapacidade de dizer com firmeza e sem rodeios “não” a propostas que não fossem em si mesmas obviamente absurdas, agressivas ou injustas” – traço que faz lembrar outro célebre personagem melvilliano, o escrivão Baterbly, da novela homônima. “Neste particular, Billy era um exemplo admirável de como aquele interventor velhaco, o invejoso desmancha-prazeres do Éden, ainda tem algo a ver com todo e qualquer lote humano neste planeta Terra. Discreta marca de seu carimbo, como para nos lembrar “eu também tenho parte”, escreve Melville, em outra referência à Sagrada Escritura.
A gagueira do Billy, esse pequeno “defeito” que macula a impossível perfeição absoluta, é responsável pelo assassinato não intencional que comete, e que acaba trazendo para o centro da trama o capitão Vere. Oficial inclinado “por tudo o que fosse intelectual”, Edward Vere guarda total fidelidade à disciplina e propõe o julgamento de Billy segundo as mais rígidas normas militares. É quando fica estabelecida por completo a tensão que Melville constrói em sua novela.
Por intermédio do íntegro e injustiçado Billy, a quem não se havia oferecido “a suspeita maçã do conhecimento”, o autor faz o elogio da natureza, “que é direta, ardilosa, forte, bela e boa, mas também brutal”; confrontando-a com a cultura, “ardilosa, fraca, malíflua e, por vias tortas, igualmente brutal”, conforme anota Bernardo Carvalho no prefácio. O julgamento de Billy, feito dentro do próprio navio, sublinha as diferenças entre a Justiça dos homens e a Justiça de Deus. Sob o prisma legal, o marinheiro é condenado, embora no fundo tenha sido vítima das artimanhas do mestre-de-armas.
O reconhecimento da eterna luta cósmica do Bem contra o Mal, ensaiada pelos dois personagens, não implica, porém, uma visão catequizadora. Muito pelo contrário: como se quisesse distinguir o Evangelho do que se venha a fazer em nome dele, Melville chega a criticar a Igreja em pelo menos dois momentos. Primeiro, quando afirma: “Para enfrentar o Juízo Final, a inocência era ainda melhor que a religião”. Em seguida, ao atestar a impotência do capelão diante da “injusta” pena marcial que se impôs sobre Billy: “O fato é que o capelão é ministro do Príncipe da Paz, mas serve nas hostes de Marte, o Deus da Guerra”. Esta aparente contradição explica-se no reconhecimento da árdua mas primordial tarefa do indivíduo de preservar, mesmo sob “constante fricção com o próprio mundo”, a faculdade de não ter entorpecidos seus “lampejos espirituais”, e também no elogio da inocência, da busca pela Verdade que pode sublimar a vida, malgrado a depravação que os (podres?) poderes humanos possam ensejar.

 
*Resenha publicada no suplemento Idéias (Jornal do Brasil)


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